Hall de Entrada

- Eu vou com vocês - Decidiu-se Michael.


Ele sabia que a volta para o seu mundo não seria algo fácil, viagem interdimensional não lhe parecia algo que poderia ser resolvido com um estalar de dedos, e mesmo que fosse dependia muito da pessoa em si. Ele não tinha dúvidas de que aquelas pessoas iriam ajudá-lo, já haviam consertado-o no final das contas. Mas... Havia algo ali. Seria receio? Talvez fosse, era uma das duas opções que ele encontrar no seu banco de dados que batiam de frente com a sensação que tinha. Receio ou medo. Mas certamente era receio. Michael estava com receio de voltar ao seu mundo. E aquilo o preocupava, ele não deveria ter emoções, não era capaz de tal. Podia simulá-las, é claro, mas possuí-las? Isso era algo impossível. 

- Tudo bem então, é por aqui! - Kit sorriu um pouco, ela tinha algo nela que assemelhava-se bastante a um gatinho, e como Michael ficaria algum tempo por ali, ele perceberia que não era apenas uma impressão. - Quando as coisas estiverem um pouco mais tranquilas eu tentarei transportá-lo para o seu mundo. Normalmente eu gosto de conhecer o lugar para onde estou viajando, mas é o que dizem... prioridades.
- Não seria melhor dizer a ele o que está acontecendo, pode ser bastante confuso acordar num mundo que não conhece com pessoas falando aleatoriamente sobre a situação do mesmo. - Chloe argumentou, sua cabeça tombando para um dos lados enquanto ela caminhava. O trio deparou-se com uma escada para o andar inferior, e logo passou a descer por ela. - A propósito... não estou vendo o ladrão, o que aconteceu com ele?
- Por que está perguntando isso logo pra mim? - questionou Kit, corando um pouco, já que era natural que pela personalidade sensual de Ratatosk e a reação que causava na garota, isso virara uma implicância comum.
- Naturalmente, porquê você é a única da Equipe que esta presente, além de mim. E foi você mesma que decidiu chamá-lo para juntar-se a nós após o fiasco que foi o festival, não é?

Kit ficou momentaneamente em silêncio, mordendo o lábio inferior. Não pela óbvia tentativa de Chloe de tirar algum outro tipo de reação dela, mas pelo que acontecera no dito festival.

- Ele está em missão no momento, assim como o resto dos rapazes. - A garota puxou uma mexa negra para trás da orelha e voltou seus olhos para Michael. - Hum, bem... podemos dizer que estamos passando por um tipo de cosnpiração para trazer de volta do limbo um Deus das Trevas que, provavelmente, vai voltar irado e querendo matar todos nós. Isso é um resumo...

A movimentação de Michael era perfeita no verdadeiro sentido da palavra, humanos cometiam muitos erros, inclusive quando andavam. Acabavam tropeçando, batendo-se em algo ou alguém e, dependendo do tipo de chão, eles escorregavam e caíam. Mas não havia isso com Michael. A distância que ele mantinha das coisas e das pessoas era perfeita, sem ser muito distante ou muito perto. A velocidade de seus passos era regulada para ser a mesma que a das pessoas que ele acompanhava. Mas ainda assim, parecia natural, sem parecer ser algo completamente robótico.

- Isso não fez o menor sentido para mim - Michael falou, olhando nos olhos de Kit - Mas eu acredito em você. Se precisar de ajuda, só precisa me pedir.

KIt certamente não notou aquela perfeição de caminhar que Michael exibia, mas era impossível que isso passasse despercebido pela mente analítica de Chloe. Entretanto, a mulher não disse nada sobre isso. Na verdade, seus lábios se entreabriram para explicar algo totalmente diferente.

- Bem... é natural, visto que seu conceito de divindade é diferente. Eu imagino que você já tenha uma ideia sobre os universos paralelos, o multiverso num geral. As pessoas desse mundo e de muitos outros acreditam que existiu um universo original, e que este gerou uma versão da Terra. A primeira Terra que foi registrada em todo o multiverso foi, obviamente, criada por um Deus. Este Deus acabou decepcionando-se com os humanos, que sabiam apenas matar e destruir. Então, ele teve outra ideia... dar vida a um outro mundo, onde seus Deuses seriam presentes e estariam encarregados de reger as criaturas que ali viviam.
- Esse desejo deu luz à Diamond... esse mundo em que estamos agora. Haviam cinco deuses em seu princípio: O Senhor do Fogo, Fowkes, a musa da água, Seres, o mestre dos ventos, Reidh, a mãe terra, Hera e o imperador das sombras, Ajax. - Kit continuou a história, andando mais alguns passos. - Eu não sei bem o que aconteceu, mas me parece que Ajax traiu seus irmãos e acabou sendo aprisionado para não espalhar a morte pelo Reino Diamond. Infelizmente, a paz que havia antes disso nunca retornou por completo. E hoje em dia, os melhores generais dele estão tentando soltá-lo. O que vai causar muita devastação, se ocorrer.

Ela voltou seus olhos para Michael e inclinou um pouco a cabeça, parecendo vagamente pensativa. Era como se a ideia de manter alguém preso não a agradasse, mas ela soubesse bem que não havia uma maneira melhor. Era difícil crer que um Deus das Trevas sucumbiria ao diálogo.

- Nós, da Equipe Black, estamos lutando contra isso. Eu realmente agradeço a ajuda, estamos recrutando o máximo de pessoas possível. - ela sorriu um pouco depois dessa afirmação, seus pés movendo-se novamente para seguir Chloe.

- Compreendo. A religião nunca teve um impacto muito forte em meu mundo, pelo menos não em 1000 anos de história. Antes disso ela era muito presente, mas conforme a humanidade foi evoluindo, eles deixaram esses conceitos para trás, com muito esforço é claro. Não sei se em meu mundo existem deuses, nunca houve nenhum tipo de contato confirmado - O robô levou uma de suas mãos até o queixo, parecendo pensar por algum tempo - Algumas pessoas falavam que nós, robôs, tínhamos um deus. Yahweh, o nosso criador. Mas ele era um humano, como todos os outros e apesar de o vermos com respeito, ele jamais foi cultuado. Mas se vocês dizem que essa foi a origem de tudo isso, eu acredito. Após viajar entre mundos, meus parâmetros do que é possível foram reajustados.


De fato, alguns humanos afirmavam que Yahweh era o deus dos robôs, por ter criado a nova e a melhor geração de robôs do mundo de Michael, assim como os robôs anjos e os robôs arcanjos. Eles foram criados em uma época de guerra, uma na qual o domínio dos ares se mostrar importante, mas não chegaram a serem colocados em uso. Após o final da guerra, Yahweh modificou-os, para que levassem em frente sua ideologia de paz, de aprender com os erros do passado. E tudo isso fora por água abaixo.

- Quanto mais rápido resolvermos isso, mais rápido poderei voltar para a humanidade que devo proteger. Sem falar que ficar parado e apenas observar conforme o caos acontece não está na minha programação - Michael abriu um gentil sorriso para Kit - Eu irei ajudá-los.

- Bem, o conceito de religião em cada lugar é diferente, mas é compreensível que em seu mundo ele não exista... de qualquer forma, esse mundo foi criado para que os seres permanecessem em paz e sem causarem danos a seus semelhantes. Mais uma vez, porém, parece que houve uma falha.

Chloe apoiou uma mão no queixo, agora o trio havia atingido a garagem. Havia todo tipo de veículos ali, alguns Michael poderia até não conhecer, dependendo do ponto tecnológico em que seu mundo estava... já que eles próprios foram criados por Yahweh, era natural que conhece realmente a maioria, se não todos. A mulher caminhou até um jato de aparência preta e lustrosa e acionou um botão em um pequeno objeto que tirara de seu bolso, apontando para ele. Uma comporta foi aberta, deixando uma rampa para que ela pudesse adentrar a aeronave, então ela voltou-se em seus calcanhares e encarou os dois.

- Bem... é hora de ir. Se precisarem de mim novamente, sabem onde me encontrar.

Kit deu alguns passos em direção a ela e deu-lhe um abraço apertado. - Tome cuidado, Chloe.
- Eu vou ficar bem, não se preocupe. - ela fez um gesto de adeus em direção a Michael. - Nos vemos por ai.

Ela por fim adentrou o jato, enquanto Kit se apressava em direção a alguns controles que ficavam na ponta da grande sala. Ao acioná-los, o teto abriu-se, dando visão ao céu noturno. As constelações eram totalmente diferentes da chamada Terra, mas estrelas continuavam parecendo com estrelas, assim como o sol ou a lua. Talvez até mesmo fossem similares ao mundo natural de Michael. Kit afastou-se quando a poeira levantou, a nave decolando após passar por um pequeno trecho aberto justamente para isso, e ganhando o firmamento. Ela fez o teto fechar-se novamente e depois observou Michael.

- Oh, bem... vamos ver os outros. Embora a maior parte deles não... esteja presente.

Apesar de ser uma pessoa naturalmente alegre, era visivel que Kit estava preocupada com algo. Além disso, ela pressionava vagamente a mão esquerda, parecendo sentir certo incomodo nela. Considerando que ela estava enfaixada, era de se esperar que a garota ferira-a de algum jeito.

- Falha é um tema recorrente na vida, afinal. Existe a falha no fazer, a falha no desejo, a falha com outras pessoas. Não é me de surpresa que até mesmo utopias falhem. A minha falhou, no final de contas.

'' A minha utopia ''. havia algo de errado ali. Ele não era o criador dessa utopia, apenas participara dela, fora um instrumento para mantê-la de pé. E falhara. Então o que era aquela possessividade que ele estava demonstrando? Minha utopia, meus humanos, meu mundo, minha vida, meus desejos, meus irmãos, minha falha... Nada daquilo lhe possuía, nem mesmo sua vida era sua. Ele fora criado com um propósito de falhara nele, portanto qual era o motivo por trás daquele pensamento? Ele não era humano, não fora feito para agir como um, possuía algo que lembrava autonomia, porém isso se devia ao fato de suas diretrizes serem abertas para a interpretação e... Não, elas não eram. Proteger e guiar os humanos não é algo que deveria ser interpretado. Fora assim que Helel pensara? Fora isso que o levara a loucura? 

- Até mais - Ele acenou para Chloe, conforme ela saía. A resposta fora automática, seus sensores captaram uma despedida e ele reagira de acordo com isso. A sua mão abaixou-se e ele olhou para ela por um momento. Estaria ele enlouquecendo? Ou isso se devia ao que acontecera com ele? Talvez a explosão da Estrela da Manhã tivesse causado dano a sua Inteligência Artificial. Uma pena de suas asas desconectou-se e flutuou até conectar-se a nuca de Michael, começando a analisar a Inteligência Artificial dele por falhas - Sim, vamos fazer isso - A resposta dele saiu com um sorriso, tudo parecia estar normal com Michael.

Chloe notou a inconsistência do que Michael acabara de dizer. Afinal, ela também revira as memórias dele junto com Kit, a garota mostrara-as para a mesma na tentativa de fazer com que todo o processo de concerto fosse mais ágil e perfeito. Mais uma vez, aquela alteração passara despercebida por Kit, mas não era culpa da mesma. Kit tinha seus próprios problemas para lidar, ela não conseguia perceber tudo que a rodeava o tempo inteiro.

A garota sorriu para ele e pegou-o pela mão gentilmente, retornando parte do caminho que tinham percorrido e chegando novamente no corredor que levavam aos quartos. Ela passou por algumas portas e bateu suavemente em uma, entreabrindo-a levemente. Não era o quarto de Charlote, ja que teoricamente ela esperava Kit na sala de treinamento. Também não parecia ser os aposentos privados de Cheshire...

- Sasha... você está acordada ainda?

Um resmungo veio de baixo de um montinho de cobertas. Depois de alguns segundos, uma mão brancaergueu-se no ar, como um sinal de vida. Ela tateou no ar por alguns segundos, antes que o montinho fosse afastado e a pessoa que estava abaixo dele ergue-se a parte superior do corpo.

- O que... o que foi? - ela estava obviamente dormindo até então, sua pele era pálida, os cabelos tinham um tom vermelho, mas não tão chamativo quanto o de Charlote... na verdade, de qualquer forma parecia que eram pintados, porque a raíz deles eram escuras. Os olhos cor de mel estavam marcados por suaves olheiras, e suas mechas curtas de cabelo pareciam um caos total. - Hummmmm...?

Conformem iam até o quarto da garota, a analise que Michael executava em sua Inteligência Artificial terminara. Para ser tão rápido assim, haviam duas opções: Havia apenas um erro ou não havia erro nenhum. E naquele caso, não havia nenhum erro. Ele continuava sem falhas, perfeito como seu senhor o criara. Então qual era a fonte daqueles pensamentos, por que eles insistiam em invadir a sua mente? Talvez pudesse achar suas respostas de volta em seu mundo e para isso teria que trabalhar com ainda mais afinco para ajudar aquele.

- Prazer em conhecê-la - O robô disse, voltando a agir normalmente - Me chamo Michael.

- Eu vim te apresentar... este é Michael...
- Hummm... - a moça coçou vagamente os olhos com seus pulsos e estreitou-os em seguida, como que para vê-lo melhor. - O cara que caiu do céu? Aquele que quase destruiu a mansão?
- É... mais ou menos. - uma gotinha surgiu na cabeça de Kit, ao passo que Sasha apenas bufou, tentando endiretar seus próprios cabelos com os dedos, sem muito sucesso.
- Eu estava tendo um sonho tão bom com Usui Takumi... absurdo! - ela apontou para Kit com seu dedo indicador elevando sua voz a algumas oitavas. - NUNCA LHE PERDOAREI.

Depois de um tempo encarando fixamente a amiga, a moça pôs-se finalmente a olhar Michael atentamente. Não demorou muito para que ela saltasse da cama e parasse em frente a ele, levemente ofegante, seus olhos brilhando de empolgação.

- Oh, deuses, você é tão bonito... digo... é um prazer enorme te conhecer. Sou Sasha, Sasha Bettencourt, á seu dispor.

Kit não fez mais do que coçar a parte de trás da nuca, aquela reação era esperada. Sasha, ao contrário das outras integrantes principais da equipe, não tinha um namorado e era notavelmente uma romântica incorrigível, então era mais do que natural ela cair de amores pela maioria dos caras que cruzavam seu caminho. Bom... menos os caras que estavam obviamente interassados mais em suas amigas.
Ela suspirara bastante por Ratatosk até perceber que ele preferia provocar apenas Kit. Não que tenha ficado chateada por conta disso, aquela pessoa era bastante tranquila com relação a certas coisas.

- O prazer é todo meu.

Michael era uma pessoa, ou melhor, um robô educado. Fora colocado em sua Inteligência Artifical que a educação era o melhor meio para comunicar-se e compreender melhor outras pessoas, apesar de não ser um método que funciona em todos os casos. Porém, as probabilidades de uma pessoa precisar de um outro método de comunicação menos refinado eram mínimas. Mas sim, como Sasha falara, Michael era bonito. Assim como eram todos os robôs Arcanjos. Haviam sido criados para representar o ápice da humanidade, para inspirar pessoas a serem melhores. Para isso, Yahweh usara os padrões de beleza da Terra na época que estava criando os robôs.

- Oh, uau, você estava bem ferrado, a Chloe realmente fez um ótimo trabalho! - ela soltou a mão dele para circundá-lo, olhando-o de cima a baixo como se estivesse observando todo o concerto, quando bem... talvez estivesse prestando atenção em outras coisas.
- Bem, é a Chloe... nem me surpreendo mais com as habilidades que ela demonstra a cada dia que passa.
- Verdade, verdade. - Sasha voltou mais uma vez para a frente dele e inclinou um pouco a cabeça. - Estou sabendo das coisas por alto, hum... você vai ficar por aqui com a gente por enquanto?

Aparentemente a ideia deixava-a muito satisfeita. Em compensação Kit arqueou as sobrancelhas e moveu os lábios, lembrando-a que se tratava de um robô e que claramente ele não cederia ao charme dela.

- Sim, pelo menos até a situação de vocês estar resolvida. Depois disso, volto para o meu mundo. Tenho um dever com a humanidade.


Focado. Michael era extremamente focado em sua missão. Ele fora criado para isso, no final das contas, mas também isso se devia ao fato de ter se apegado a humanidade. Ele sacrificara sua vida por eles e faria isso novamente, se necessário fosse. Na realidade, ele estava levemente preocupado. Os humanos dependiam dos robôs Arcanjos para liderá-los, assim como dos Anjos. Mas estes últimos foram eliminados por Sandolphin, seguindo as ordens de Michael e os Arcanjos... Bem, apenas Michael sobrara. Sem ele lá, ele temia que o caos fosse tomar conta.

Sasha balançou metodicamente sua mão em direção a Kit, como quem diz "eu sei, eu sei" ou "tanto faz, quem se importa?" antes de voltar sua atenção para Michael.

- Dever... você é algum tipo de anjo, não é? Kit disse... ou melhor, Kit e Clhoe estavam debatendo sobre isso e eu sem querer ouvir.
-"Sem querer, querendo". - Kit fez o sinal de aspas duplas com os dedos e suspirou. - Sasha é a mais normal entre nós, mas não conseguimos fazê-la ficar na nossa versão da Terra em segurança. Ainda mais quando ela já conhece os portais que nos ligam até lá e os segredos para ativá-los...
- Ei, não me venha com isso novamente, eu estive com você desde o primeiro momento, só porque eu não dei uma de doida que nem a Chloe, que decidiu simplesmente morar aqui, não quer dizer que não posso te apoiar!
- Mas é perigoso...
- Mas nada, eu tive treinamento também, esses meus dois olhos enxergam muito bem um alvo. - ela piscou-os como que para dar ênfase e apoiou ambas as mãos nos quadris. - Quer dizer que não vou a lugar nenhum.
- Okay, okay. - uma gotinha surgiu na cabeça de Kit. - Não é como se já não tivessemos tido essa conversa.

Me sinto num dejavu...

Uma risadinha ecoou em sua mente como resposta fazendo a garota se arrepiar e automaticamente levar a mão a cabeça, uma pequena dor começando por trás de seus olhos. Aquilo vinha ocorrendo com certa frequência ultimamente... desde a noite do Fetsival. Desde o dia que ela cruzara com aquelas pessoas, que extraditaram Nicolas e, Crós e Iris para fora daquele mundo.

- Não. Eu sou um robô, ou melhor, um androide criado a imagem dos anjos.

Michael era bem direto quando se tratava do que ele era. Já não bastava que na sua versão da Terra existia uma minoria da humanidade que cultuavam a ele e aos seus irmãos como se fossem anjos de verdade. Eles eram androides, feitos para guiar a humanidade para um futuro melhor, usando dos erros passados para que novas lições fossem ensinadas e que estes não voltassem a se repetir. Ele era alguém que acreditava veemente em sua missão, indo ao ponto de se sacrificar por ela e pela humanidade. Observou em silêncio a discussão das duas, lembrando-se muito das crianças que haviam em seu mundo.

- É natural que ela deseje ficar perto dos amigos - Em seguida voltou seus olhos para Kit - Você está bem?

- Os conceitos se aplicam para o mundo em que vivemos, Chloe disse algo similar ainda a pouco. No seu mundo os habitantes humanos veem você e os seus como anjos. Era o que estávamos debatendo na hora que ela passou...
- Você ainda parece um anjo pra mim.
- Céus...

Kit absteu-se de fazer qualquer outro comentário e apenas balançou freneticamente as mãos, pondo-as em seguida na própria cintura. Ela não queria discutir com Sasha, estava preocupada com ela como sempre. Um ano atrás, quando elas duas, Kira, Ken e Chloe chegaram àquele mundo, as coisas estavam muito mais complicadas porque a maior parte deles não tinha nenhuma noção de luta. Mesmo que isso tenha mudado, Sasha não possuia poder mágico como a maioria dos membros da Equipe Black, e Kit tinha receio dela se machucar muito enquanto permanecia com eles.

- Hum, okay, okay. Não está mais aqui quem falou. - a dorzinha em sua cabeça calou-a, ela pressionou um pouco suas mãos na cabeça e balançou-a afirmativamente. - Estou bem, é apenas uma dor de cabeça.
- Mas elas estão ficando mais frequentes, não estão?
- Um pouco, provavelmente é o nervosismo. Não se preocupem.

Mal daria para notar que a própria Kit estava nervosa por conta daquela dor, não só por sua existência, mas sim pelo que vinha junto dela. A garota já tivera uma entidade falando em sua cabeça antes, o que era perturbador, mas a aura de Ligth era completamente distinta daquilo que começava a sentir dentro de si.
Ela não gostava de pensar no que aquilo poderia ser.

- É compreensível que eu me pareça como um, meu criador sempre foi uma pessoa que se interessou muito por religião. Creio que ele tenha criado a mim e aos meus irmãos baseando-se no que ele imaginava que eram as aparências dos anjos.

Qualquer tentativa de flerte da parte de Sasha não era notado por Michael, pelo contrário, era analisado e catalogado dentro do banco de dados que ele possuía sobre as pessoas que encontrava. Nenhuma informação era ignorada ou descartada. Porém, Michael não fora programado para notar flertes ou até mesmo provocações. Não levava tudo para o sentido literal, porém quando o assunto era aquele, o arcanjo de metal era uma completa negação. Tanto que ele catalogara as observações anteriores de Sasha como '' Interesse pelo o que lhe é novo ''.

- É importante que você cuide de sua saúde, tanto física quanto mental.

Kit preferiu não se intrometer nas tentativas frustradas de Sasha em chamar a atenção do robô, aparentemente aquilo não iria muito longe, uma hora ela perceberia que aquele ser ali na frente delas não fora programado para romance ou algo que o valesse. É claro que Kit vira coisas estranhas durante suas viagens, quebras de paradigma, mas ela tendia a não generalizar o que presenciava.

- Hum, espere... havia uma religião em seu mundo, então seu Criador os fez baseando-se nela, e com o passar do tempo vocês começaram a ser vistos como parte de uma outra religião? - Sahsa parecia visivelmente confusa com alguma coisa, tanto que esqueceu-se totalmente do flerte que estava fazendo para Michael e afundou-se em pensamentos. Sua expressão voltou-se novamente para Kit, que ainda massageava a cabeça suavemente, e tornou-se visivelmente preocupada. - Você não acha que pode ser aquela criatura... Ligth outra vez, não é?

Kit meneou a cabeça negativamente, tirando suas mãos da mesma e entrelaçando os dedos uns nos outros.

- Não... a consciência dela assim como de suas "irmãs" está focada em Haradja. Não faria o menor sentido que ela retorna-se a mim. - sua cabeça voltou-se em direção a Michael. - Pode deixar, eu vou fazer o possível.

Mesmo que estivesse disposta a não preocupar os outros, toda a situação de Diamond não ajudava muito. Era natural que Kit as vezes se senti-se sobrecarregada, mesmo com toda a ajuda que possuía.

- Hummmm... - Sasha bocejou longamente, o que acabou tirando-a daquele estado meditativo de antes, e observou vagamente um estranho relógio em seu pulso. A marcação de tempo em Diamond era similar à da Terra, entretanto era possível perceber que ele parecia passar mais rápido no Reino do que fora dele. - Não querendo te expulsar nem nada do tipo, mas... não está na hora de seu treino com a Bruxa?

Kit imediatamente ficou um pouco mais pálida. Michael perceberia que ela ficava assim com frequência toda vez que ouvia o termo "Bruxa" ou o nome "Charlote", principalmente juntos à palavra "Treino"

- Epa...

- Não. Nós fomos construídos com o propósito de guiar a humanidade para um futuro melhor, utilizando dos erros do passado para ensinar os mais novos a não repeti-los. E funcionou. Por um tempo.

Os olhos de Michael eram robóticos, registravam tudo ao seu redor e os analisava profundamente. Ele, porém, não podia ver o estado de saúde de uma pessoa sem tocá-la e sem inserir uma pequena agulha, que espalhava nano-robôs pelo corpo da pessoa sendo analisada, podendo providenciar para ele uma análise completa de como a pessoa estava. Ele não faria isso com Kit, não sem a permissão dela, porém era uma verdade que sua preocupação estava ganhando dele. Depois, quem sabe em outro dia, ele vá sugerir isso para ela, apenas como uma garantia de que a garota está realmente bem.

- Você deveria ir, não? - Questionou Michael, olhando para Kit e notando o medo que se espalhava por ela.

- É? Mas os anjos da maioria das religiões cristãs fazem o mesmo. Ou melhor, é dito que eles fazem, não que eu tenha visto algum antes. Você já viu algum anjo, Kit?

Os olhos da garota piscaram lentamente e ela meneou a cabeça, balançando-a de um lado para o outro.

- Eu encontrei uma mestiça, certa vez... mas anjos puros, não.
- Ah, a dona daquela pena negra que você guarda?
- Isso. - Kit fez um sinal de joinha com uma das mãos e suspirou, tirando uma liga que estava presa em seu braço como uma pulseira e usando-a para prender o próprio cabelo. - Você tem razão Michael, quanto mais eu enrolar pior vai ser. Sasha, você pode continuar a mostrar o lugar para ele enquanto isso?
- Mas eu ainda estou com sono. - a garota ruiva resmungou, deixando a cabeça pender para um dos lados e observando de canto a figura de Michael, como se pesasse os pós e os contras de deixar seu sono de lado para ficar junto de um "deus grego" daqueles.
- Hum, tudo bem então. - Kit olhou para Michael. - Você se importa de assistir eu ser massacrada viva por uma mulher com um nivel de magia muito mais evoluído que o meu? Acho que mandá-lo de volta para o quarto seria um pouco chato...
- Eu vou com vocês dois!

A voz de Sasha veio de longe, aparentemente ela havia desaparecido para vestir alguma coisa dentro do quarto, fechando a porta atrás de si e retornando com uma roupa mais apresentável.

- Vamos lá!

- Você está usando termos não literais, não é? - Michael questionou, olhando para Kit - Você não vai ser realmente massacrada, certo?

Havia, em Michael, uma enorme preocupação com o bem estar de todos. Incluindo Kit, que salvara ele. Por estar em um mundo diferente, ele não tentaria impedir a garota de ir para o seu treino, parecia ser algo bem importante no final das contas, porém em sua Terra esse tipo de coisa não passaria. Não que isso importasse muito agora, ele estava em outro lugar, com outras regras e costumes. Estas que deveriam ser analisadas por ele, para que pudesse se adequar melhor ao local. Ainda assim, Michael acompanhou Kit, decidindo que seria melhor aprender mais sobre a magia que existia naquele mundo.

Uma gotinha surgiu na cabeça de Kit enquanto ela era questionada sobre aquilo, e então Sasha riu, levando uma das mãos a boca, como se aquilo fosse muito divertido de se assistir.

- Não... mas pelo menos é engraçado.
- Vocês gostam de me ver sofrer... - Kit choramingou, girando nos calcanhares para recomeçar a caminhar, na direção oposta àquela que ambos tomaram para chegar aos quartos. - Oh, bem... é bastante puxado, mas estou acostumada.
- Que nada, ela choraminga toda vez que vê a Charlotte. Pelo menos com o mentor antigo dela era mais reclamação e menos pavor.

- Compreendo, então o treino é tão rigoroso que te lembra de uma morte executada com crueldade.


Não era como se Michael não entendesse que Kit estava exagerando. Ou assim ele esperava. Por fim, acabou por começar a seguir a garota conforme eles andavam para o treino dela. O mestre que Michael tivera, seu criador, fora um homem gentil e amável, portanto ele não compreendia completamente aquele temor que Kit tinha para com Charlotte. Na verdade, ele entendia sim, porém se fechava para essa informação que possuía. Nunca tivera um mestre que lhe causava medo, porém tinha, em sua memória, dados históricos de pessoas que passaram por eventos similares aos de Kit, fosse algo criado para a fantasia ou algo real.