Hall de Entrada

Kit Black estava tendo sua cota de azar naquela semana. Ela francamente pensara que já tinha extravasado e chegado ao limite do absurdo com relação a sua má sorte. Era claro que estava totalmente errada.
Depois de ter visto o irmão, o mestre e a líder da equipe serem extraditados para fora da dimensão e descobrir que os Duques de Ajax que haviam sumido a séculos estavam tramando algo de novo, ainda chegara a mensagem de que logo ela precisaria partir para Moon Sky para encontrar uma tal de Charlotte, a Bruxa Vermelha. Com esse título e morando naquele lugar, algo lhe dizia que haviam mais problemas a caminho.


Ela estava estirada sozinha na poltrona do Hall de Entrada, seus pensamentos voltados para algum ponto longe dali, quando as defesas da mansão começaram a apitar freneticamente em seus ouvidos. Ela tampou as orelhas com as mãos, tentando bloquear o som que acabava dando-lhe uma terrível dor de cabeça. Seria algum teste dos sistemas de defesa? Ela preparou-se para subir para os andares superiores quando passou por uma janela e notou um brilho acima do normal vindo do céu.


Aquilo não podia ser algo bom.


Dando meia volta, a ovem correu para o lado de fora. Agora além do apito do computador central havia alguma frase estranha entrando em seus ouvidos hiper sensíveis. Alguém pedindo ajuda? Seus olhos piscaram e encararam a coisa em queda livre, e ela foi capaz de discernir algo humano - ou robótico - ali. Sem pensar muito no que estava fazendo, a garota expandiu um escudo mágico dela para a coisa, englobando-a totalmente e aos poucos diminuindo sua velocidade. Por um segundo Kit imaginou que não daria tempo, mas ela conseguiu deter a queda nos últimos segundos. Com suor escorrendo pela testa dado o esforço que tivera para controlar aquela magia, ela saiu do ponto em que estava para correr em direção ao corpo.

- Ei... ei, você está bem!?

Assim que a sua queda foi detida, um leve suspiro deixou a boca do robô. Podendo ver mais de perto, Kit Black notaria que ele possuía similaridades com um humano e até mesmo poderia passar por um. Certamente enganaria muitas pessoas, porém o fato da parte inferior de seu corpo estar faltando demonstrava o que ele realmente era. Circuitos e peças metálicas estavam expostas, algumas soltando faíscas, outras ainda alaranjadas devido ao calor da descida. O braço que sobrou estava sendo erguido, na direção dos céus. Os dedos tentavam se abrir, futilmente. A mão também estava quente, na realidade, todo aquele corpo fervia e tocar nele certamente não era uma boa ideia.

- Vinde a mim, minhas asas - A voz do robô saiu fraca e do céu, mais alguns pontos pareceram brilhar fracamente. A descida destes fora controlada, diferente da descida do corpo robótico. As asas eram metálicas, e suas penas eram um pouco mais grossas do que o normal e conforme se aproximavam, Kit poderia notar que algumas delas haviam se aberto, como se fossem flores e delas pequenos propulsores garantiam que elas não caíssem por terra como seu dono. Elas pousaram suavemente ao lado do corpo do robô, que lentamente virou sua cabeça para Kit - Eu... me chamo... Michael... en..entregue isso para alguém que... tenha conhecimento com má...máquinas. Perdoe-me pe...pelo incô...incômodo.


Da palma da mão dele, saiu algo parecido com um pendrive prateado e este não estava incandescente como o resto do corpo daquele robô. Assim que Kit pegasse aquele pendrive, mais faíscas voariam da parte de baixo do tronco do robô, junto de um estalido violento. O braço metálico caiu inutilmente ao lado do corpo dele, não possuía forças nem para isso. Os olhos deles pareciam estar perdendo aquela suave luz azul que possuíam.

- Preciso... hibernar... salvar... energ - Antes mesmo que pudesse terminar a frase, os olhos se apagaram. Aquele ser não deveria estar morto, uma vez que falara em hibernar.

Kit já havia visto aquele tipo de tecnologia algumas vezes, na viagem que fizera um ano atrás para procurar a pedra que faltava para trancafiar sua irmã. Mesmo assim, havia algo peculiar naquela situação. Ela certamente não saberia como consertá-lo, e apesar de não ser obviamente alguém humano, a garota estava preocupada com sua saúde ou existência, o que achasse melhor definir. Seus olhos subiram para o céu, de onde despencaram as ditas asas daquele ser, e ela os arregalou involuntariamente ao vê-las. O quão belo ele seria se estivesse em seu bom estado?

- Alguém... que entenda de máquinas? - não que Diamond fosse um lugar totalmente atrasado tecnologicamente, mas é claro que sua tecnologia desenvolvera-se diferente da maioria dos mundos mais evoluídos, já que eles tinham o apoio da magia. Ela não saberia dizer se alguém que conhecia possuía a capacidade de remontá-lo. - Eu... farei o que for possível, apenas descanse.

Ela pegou o pen-drive, notando as faíscas e precisando se afastar um pouco. Doía-lhe no coração ver alguém naquele estado, sendo uma máquina ou não. Quando o ser de fato "hibernou", seus olhos marejaram um pouco, mas não teve tempo de fazer qualquer tipo de coisa antes que um rapaz saísse de dentro da mansão, observando-a de cima a baixo.

- Milady, os computadores estão um caos, o que foi que... - ele parou de falar ao notar o ser estatelado contra o chão. Seus cabelos eram negros e repicados, os olhos tinham um tom bem escuro, ambos contrastavam bastante em sua pele branca, mas ele parecia tão normal quanto qualquer ser humano que se prezasse, tirando uma certa sensação estranha que as pessoas tendiam a ter quando aproximavam-se dele pela primeira vez. - O que é... ele?
- Eu não faço a menor ideia. - ela normalmente reclamaria pelo tratamento um tanto quanto formal que recebia dele, mas estava muito preocupada para isso. - Ches, você entende algo de máquinas, tecnologia... ou algo do tipo?

Ches, ou Cheshire como era devidamente chamado, meneou a cabeça lentamente e apoiou as mãos na cintura. - Perdoe-me, milady, mas o seu limite de má sorte está tornando-se absolutamente ridículo.
- Não me diga. - uma gotinha surgiu na cabeça dela. - Nesse caso, não tem jeito... eu só posso contar com Chloe. 
- Mandarei uma mensagem pedindo para que ela venha imediatamente. 
- Faça isso. - Kit respondeu, os olhos voltando-se para aquele que se apresentara como Michael. Com um movimento lento das mãos, voltou a invocar um escudo, mas desta vez manteve-o apenas na parte inferior do corpo destruído, o que poderia ajudá-la a transportá-lo para dentro. Ainda um pouco nervosa, Kit Black tratou de deixá-lo o mais confortável que conseguiria em um dos quartos vazios da mansão, a espera de que Chloe chegasse e que ela fosse capaz de resolver a situação.

A garota perguntava-se o que poderia fazer por aquele ser enquanto Chloe não estava presente. A amiga, que ficara na Sede Oficial, demoraria no mínimo mais algumas horas para chegar, a menos que encontrassem um mago que conhecesse teletransporte...
Kit lembrou-se de seu mestre, perdido em alguma dimensão desconhecida com seu irmão e Iris, uma pontada de insegurança queimando em seu coração. Ela sabia que não estava sozinha, todos os outros estavam junto dela, buscando uma solução para aquela provável conspiração dos Duques de Ajax.
Mesmo assim, ainda doía um pouco. Isso sem lembrar-se do túmulo que havia naquela cidade.
Se ela se lembrasse do túmulo sob as cerejeiras, certamente não trabalharia mais naquele dia.


Era enquanto deixava os pensamentos vagarem que o corpo do ser moveu-se e um pen-drive saiu de suas mãos. Ou parecia muito com um, seja lá o que fosse. Ela aproximou-se para ler o que estava escrito nele e piscou os olhos.

- Memória? - ela deduziu, na verdade era bem óbvio considerando a situação. Kit já conhecia algumas linguas, não tantas quanto Crós, mas certamente já era alguma coisa. Ela pegou o objeto com cuidado e pôs em frente aos olhos, correndo sua visão dele para Michael e vice-versa. Depois de alguns segundos,movimentou-se, sussurrando um "já volto", mesmo que ele não estivesse consciente para ouvir.


Seus passos percorreram as escadarias e ela rapidamente adentrou a sala onde ficavam os computadores, conectando o pen-drive na máquina principal e esperando... talvez ali houvesse alguma pista para decifrar quem era aquela pessoa e porque havia caído do céu.

A imagem entrou em foco, novamente aquela mesma cidade, porém mudada. De alguma forma, ela parecia estar ainda mais perfeita do que antes, com as casas estando em melhor estado, mais painéis solares haviam sido espalhados e, pela audição amplificada de Michael, era possível ouvir risadas. Não havia uma única pessoa triste naquela cidade. A câmera virou-se e um rosto enorme foi revelado, sendo completamente feito de metal e sendo maior que uma casa. 

- Como os humanos estão indo, Sandolphin? - Perguntou a voz de Michael.

- Bem, Michael. Eles estão bem. Estão aprendendo com os erros dos passados, estão melhorando, tornando-se pessoas boas, diferente dos líderes do passado. Eles estão me ensinando novas músicas, Michael, e eu as canto para eles todos os dias - Disse o robô, chamado Sandolphin. Através da pele metálica dele, era possível ver o corpo de Michael em todo o seu esplendor, não quebrado como Kit vira. Ele parecia ser a definição da perfeição, não havia uma falha em seu corpo e ele trazia consigo um ar majestoso. E suas asas estavam expandidas. Ele levantou voo e circulou Sandolphin, Kit poderia ver que a sombra que havia em uma parte daquela cidade provinha dele, de tão enorme que era o robô.

- Isso é bom. Preciso voltar, Helel me chama. Até mais, irmão - Disse o arcanjo de metal, virando-se para afastar-se.


- Até mais, irmão - Sandolphin repetiu a despedida de Michael e, conforme o outro se afastava nos ares, começou a cantar uma canção. Talvez uma das várias que os humanos haviam lhe ensinado. Era uma bela canção, exaltando a paz que estava por vir.

E novamente, a imagem cortou, com o nome YAHWEH e o símbolo do triângulo dourado voltando a aparecer.

Os olhos de Kit estavam presos na tela. Ela vira alguns mundos em que havia a perfeição, paz e tranquilidade para todos os homens, mas eram raros. De qualquer forma, era sempre uma boa surpresa deparar-se com eles. Ela ergueu a mão para tocar a tela, onde a imagem gloriosa de Michael era reproduzida fielmente, pelo que parecia.

- O que foi que te deixou nesse estado?
- Milady... - a voz de Cheshire mais uma vez chegou a seus ouvidos, bem no momento que a memória mudaria para outra. Ela voltou sua cabeça para o rapaz, esperando que ele continuasse o que estava prestes a dizer. - Já contatei Chloe, ela virá o mais rápido que puder.
- Obrigada, Ches. Quer ficar aqui comigo, estou verificando os dados no pen-drive que saiu da mão do robô... digo... Do Michael. 

A expressão do garoto franziu-se, por alguma razão não específica, mas ele puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Kit, olhando para a tela.


- Já descobriu que tipo de ser ele é?
- Aparentemente é como um anjo... A julgar pelos sistemas e pelo que vi até aqui, devem ter sido criado pelo deus de uma dimensão próxima para guardar os humanos.
- Nada muito diferente do normal.
- Se pensarmos bem a fundo, você tem razão. - ela mordeu o lábio inferior, pensativa, enquanto esperava a próxima memória começar.

A imagem voltou e a cidade estava em chamas. Explosões ocorriam a todo momento, haviam gritos de pessoas vindos de todos os cantos, Sandolphin parecia estar sendo atacado por outros robôs anjos, porém estes eram claramente menores que o enorme golias metálico. E, em algum canto, sete trombetas soaram. Michael, no ar, desceu para o chão em um voo rápido e salvou uma família de humanos de uma casa que ia cair e esmagá-los. Após garantir-se que eles estariam a salvos, Michael voltou aos céus e algo passou por ele. Rápido demais para ele notar o que era, apenas sabia que era um corpo metálico e ele seguiu a trajetória que o mesmo fazia, segurando-o antes que fosse ao chão.

- Irmão! O que está acontecendo? - Questionou Michael.

- É... He...lel - Disse o robô arcanjo Gabriel. Ele estava em um estado horrível, pior do que o próprio Michael que quase caíra em cima de Kit. E com essas preocupantes palavras, o arcanjo morreu nos braços de Michael. Michael desceu para a terra e repousou o que restara de Gabriel em um telhado de uma casa, virando-se e indo até uma enorme torre, ao lado da qual estava Sandolphin.

- Sandolphin! - Chamou Michael, desviando-se de robôs anjos que o atacavam em pleno ar - Desative-os!

- Não posso fazer isso irmão, já não possuo mais tal permissão - Informou Sandolphin. Michael olhou para trás, para o caos que estava na cidade e voltou seus olhos para Sandolphin.

- Então... destrua-os! Pelo bem da humanidade isso não pode continuar! - Gritou Michael. O enorme robô ergueu suas duas mãos e juntou suas palmas, como quem reza uma prece e uma enorme onda eletromagnética espalhou-se pelo local, inúmeros robôs anjos caíam dos céus, indo em direção a terra - Perdoem-me... 


Michael foi até a torre e entrou por um buraco que havia ao lado dela. Por uma das janelas era possível ver parte do braço de Sandolphin, que era ainda maior que esta construção. E do lado de dentro, ele viu uma cena que ficaria gravada em sua memória para sempre. Todos os arcanjos, todos os seus irmãos estavam completamente destruídos, aos pedaços. E no centro disso tudo, estava Helel. De suas costas, seis asas metálicas expandiam-se, dois pares de asas haviam sido tomadas de seus irmãos.

- Helel, qual o significado disso? - Perguntou Michael, ainda incapaz de aceitar o que via.

- Eu sou um dos juízes da humanidade e eu julgo que ela já não é permitida a existir - Disse Helel, contraindo suas asas - Pense, irmão! Nós fomos criados por nosso pai para a guerra, para eliminar humanos! Este era nosso propósito original. E agora, criamos um mundo perfeito, um local onde todos podem existir na mais pura felicidade... menos os humanos. Não importa o quanto tentemos, eles continuam a errar. Não aprendem com o passado, são incapazes de seguir em frente, são incapazes de melhorar!

- E é isso que faz deles humanos, Helel! - Argumentou Michael - Eles irão tropeçar, eles irão cair e eles irão se levantar! Foi assim que nosso pai nos ensinou! Nós não somos armas, somos escudos! Devemos proteger a humanidade, não destruí-la.

- Nosso pai, enquanto nos criava, montou uma arma - Contou Helel - A chamou de Lúcifer. A Estrela da Manhã. Ela parece um satélite, mas seu objetivo é armazenar energia solar e transformá-la em um poderoso raio de energia capaz de destruição em massa. Após as guerras terminarem e após nossa criação, esta arma ficou funcional, acumulando energia para transformar a Terra em um local desolado, onde apenas robôs poderiam sobreviver. Por que ele não desativou essa arma, eu me perguntei. Foi quando percebi. Estava no plano dele apagar a humanidade e deixar que nós governássemos o que estava por vir! E eu... fui o escolhido para puxar esse gatilho!

- Você enlouqueceu... - Disse Michael, as penas de suas asas metálicas caindo. A parte de trás delas abriu-se, como se fossem flores e pequenos propulsores iniciaram-se, mantendo ditas penas no ar. E a parte da frente abriu-se como se fossem flores, revelando pequenos lasers, prontos para serem disparados - Isso já foi longe demais - O que restou da asa de Michael foi desconectado de suas costas, com ele pegando estes dois arcos e unindo-os a frente de seu rosto, formando uma espada - Você não é filho de nosso pai, jamais poderá dizer que foi escolhido por Yahweh. Filho da discórdia e da desgraça, este é o julgamento que passo para ti.

E a imagem cortou, conforme Michael preparava-se para enfrentar Helel. O símbolo triangular e o nome Yahweh voltaram a aparecer.

- Uma traição? - Cheshire mencionou lentamente, os olhos presos a tela.
- Parece que sim... de quanto tempo você acha que são essas memórias?
- Se forem atuais... - ele murmurou, passando a mão pela nuca e suspirando. - É perceptível quem perdeu.

Kit fez uma careta, ajeitando-se na cadeira e apoiando-se no braço esquerdo, o rosto recostado na mão. Esse tipo de coisa não devia ser novidade para ela, mas ainda assim era bastante triste. Justamente por ter visto o quão linda a cidade ficara que a destruição subsequente parecia tão atroz.

- Naquela época... também foi terrível.

Ches parecia perdido em pensamentos. Kit não fazia ideia de que ele estava falando, talbvez estivesse referindo-se a invasão de Haradja? Se fora terrível para ela, imagine para a população das cidades que foram tomadas até que ela conseguisse selar a própria irmã. Erguendo suavemente a mão para segurar o ombro de Cheshire, ergueu seus olhos para a tela novamente.

A imagem voltou, Helel estava no chão, com as asas quebradas em vários lugares, porém apenas as dele, as dos outros arcanjos estavam intactas, seu corpo estava destruído e a espada de Michael estava atravessada em seu peito. Uma poça de algum líquido negro se espalhava de dentro do corpo dele e mostrava o reflexo de Michael. O arcanjo de metal estava intocado, nem mesmo fora ferido. 

- E é por isso que... o papai marcou seus arquivos como... - A voz de Helel falhava - '' Destruidor de Demônios ''

- Você sabia que não tinha como ganhar - Falou Michael, endireitando seu corpo, sua expressão era uma neutra - Todo esse caos, toda essa destruição para nada...


- Nada? - Helel soltou uma fraca risada - Em poucos instantes um míssil irá atingir esse local, destruindo você e tudo o que sobrou. E depois... A Estrela da Manhã irá disparar contra a Terra...

Michael olhou para cima, no lugar onde deveria haver o teto da torre, não havia nada. Ela fora destruída no embate entre Michael e Helel, e ele podia ver o céu, assim como o míssil que se aproximava em uma velocidade assustadora. Não havia muito que ele podia fazer naquela situação, se tentasse impedir o míssil, a explosão gerada iria destruí-lo assim como a maior parte da cidade e se tentasse fugir seria pego na explosão. Então, algo surgiu sobre a torre e tampou a visão do céu. Era um corpo metálico, enorme, ainda maior que aquela torre.

- Sandolphin o que está fazendo? - Michael gritou

- Meu corpo será o seu escudo - Disse o anjo gigante - Você deve guiar a humanidade, Michael. Ela não pode se perder novamente.

Antes mesmo que Michael pudesse protestar, o míssil atingiu o corpo de Sandolphin, em uma explosão que fez tudo tremer. Michael tirou sua espada do corpo de Helel e a transformou novamente em suas asas, com as penas metálicas retornando para os seus lugares. E logo raios de sol começaram a entrar para dentro da torre, cortando a sombra de Sandolphin. Seu corpo havia sido partido no meio pelo impacto do míssil, até mesmo o maior e mais resistente dos anjos, caía. E cantava uma canção, uma que seus amados humanos haviam lhe ensinado, uma que exaltava a paz que estava por vir. E assim, Sandolphin caiu. A parte superior de seu corpo tombando para o lado e fazendo com que tudo estremecesse, enquanto suas pernas continuavam em pé. Michael olhou uma última vez para o corpo de Helel, e seu traidor proferiu suas últimas palavras.

- Minha consciência está dentro da arma, Michael. A Estrela da Manhã irá disparar. Eu agora sou Lúcifer, destruidor de mundos - E Helel deu uma última risada, antes de seus olhos apagarem-se, sua consciência sendo transferido para cima, para a órbita da Terra. Para a Estrela da Manhã.

- Senhor, dai-me forças - Murmurou Michael, pegando as asas de seus irmãos caídos e colocando-as em suas próprias costas - Eu devo ter o suficiente para chegar até lá.

E Michael decolou, subindo em linha reta, diretamente para a Estrela da Manhã. Era possível notar que as asas utilizavam de uma fonte de energia diferente da que abastecia Michael, logo ele usava o que restara da força de seus irmãos para subir e impedir a destruição da Terra. Normalmente, para foguetes, demoraria um tempo curto para sair da Terra, tempo do qual Michael não dispunha. Os mais avançados demoravam questão de 10 minutos para deixar a Terra. Michael o fizera em quatro. Ele viu o satélite, abrindo-se como se fosse uma flor, revelando um enorme canhão de energia em seu centro. As asas inferiores falharam e desconectaram-se, sobrando apenas as originais de Michael. Ele segurou a parte inferior do satélite e ofereceu sua energia vital, o que usava para viver, para dar poder as suas asas e rotacionou o satélite, seu poderoso disparo passando longe do planeta, indo em direção ao vazio do espaço. Porém, talvez por tamanho poder usado, ou como uma última estratégia de Helel, o satélite explodiu, lançando Michael no espaço, distante da Terra que desejava proteger. Parte de seu corpo fora destruído, como ele bem podia ver, enquanto outras partes sobreviveram. Ele estava no estado em que Kit o encontrara. E ele vagava para longe da Terra. Ele estendeu sua mão para o planeta, que agora estava tão distante e a gravação terminou. Não havia mais nada ali que eles pudessem ver.

Ao ver aquelas cenas, uma lágrima intrometida rolou pela face de Kit. Ela secou-a agilmente, mas continuando a assistir as memórias de Michael, mais lágrimas seguiram-se a primeira. No fim da gravação, ela já havia puxado as mangas do casaco que usava para enxugar o rosto, Ches olhando fixamente para ela.

- O que foi?
- Você é realmente muito empática, milady.
- Tsc.  - ela secou pela enésima vez a face e abanou-a suavemente com a mão direita, seus olhos presos na tela. - Acho que acabou. 
- Sim. - ele fez uma pausa. - Talvez mandá-lo de volta para casa seja fácil.
- Eu não posso sair de Diamond enquanto os Duques continuam fazendo o que bem querem... os outros viajantes dimensionais ou estão vagando por ai ou não querem ajudar. 
- Vai ser um pouco problemático. - Ches ergueu-se da cadeira. - De qualquer forma, fazê-lo voltar ao normal é o passo principal.

Lentamente, seus olhos se abriram, revelando uma coloração amarela, quase dourada. Ele ficou deitado por alguns momentos, sem se mover, sem falar mais nada, apenas seus olhos estavam abertos. Então, a sua mão direita se fechou e abriu, em seguida a esquerda. Uma das pernas foi erguida e abaixada para logo em seguida a outra fazer o mesmo movimento. Sua cabeça girou para um lado e em seguida para o outro. E Michael sentou-se na cama. Suas asas haviam sido contraídas no momento que foram conectadas em suas costas, logo não estavam expandidas. Ele olhou para as pessoas ao seu redor, porém não reconheceu nenhuma delas. Lembrou-se de que já não estava em sua Terra, e que aquele não era o povo que ele deveria guiar.

- Obrigado por sua ajuda - Ele agradeceu, abaixando a cabeça ao grupo de pessoas.

- Parece-me que todas as partes foram devidamente conectadas.
- Não fale como se ele fosse um robô, Chloe!
- Porém, ele é um. - os olhos da garota a sua esquerda, castanhos translúcidos, piscaram lentamente. Ela possuía cabelos cacheados longos, agora presos em um rabo de cavalo, e vestia algo bem similar a um jaleco por cima de roupas simples. Sua expressão mostrava certa falta de emoção, mas seus olhos brilharam um pouco, talvez com compreenção, quando dirigiu-se diretamente a ele. - Você se sente bem? Está tudo no lugar?

A segunda pessoa presente, Kit Black, entreabriu os lábios para fazer um comentário, ficando bastante corada em seguida, como se tivesse cometido algum tipo de ato terrível.

- Eu... eu espero que esteja bem. Nós acabamos vendo as suas memórias, pensei que poderia ser algo que ajudasse em sua... recuperação. Er... concerto?
- Você está bastante nervosa, Milady, relaxe um pouco. - argumentou um homem de aparência muito simples, tipicamente humana, mas que emanaria uma aura peculiar para aqueles que podiam senti-la.
- Não é assim tão simples quanto parece!
- De qualquer forma... seria melhor deixá-lo falar por si mesmo. Vocês certamente estão incomodando-o, com tantas perguntas.


Uma quarta voz foi ouvida. Ela pertencia a uma mulher cuja idade era difícil de definir, considerando que todos os outros presentes eram bastante jovens, passando um pouco da adolescência. Os cabelos dessa mulher eram vermelhos como uma brasa, pareciam ter vida própria. Algo em seus olhos, igualmente com uma coloração avermelhada, lembrava também o fogo, um crepidar lento e letal.

- Sim, eu estou bem. Foi um trabalho perfeitamente executado - Comentou Michael, com um pequeno sorriso em seu rosto. Não era fácil consertá-lo, apesar de ele ter métodos de recuperar danos realizados, a área para isso havia sido destruída durante a explosão, porém quando Chloe o consertara, essa parte ajudou a acelerar o processo, incluindo as partes mais difíceis - As minhas... Memórias?

Ele pareceu ficar confuso por um único instante, não se lembrava de ter liberado elas de alguma forma. Mas então, um sorriso cruzou seus lábios, com ele parecendo ter compreendido a situação.

- Acho que foi algo do meu subconsciente, uma necessidade de ajudá-los a compreender melhor sobre quem eu sou e como vim parar aqui. Afinal, este é seu mundo e sua casa e eu caí em ambos - Falou Michael, ainda mantendo aquele pequeno sorriso em seus lábios - Perdoem-me por isso, eu tentei ao máximo controlar minha queda para que eu caísse em algum lugar longe de sinais de vida, mas quando minhas asas se soltaram, eu não pude fazer muito.

- É bom saber disso, estava com sérias dúvidas se conseguiria deixá-lo em perfeito estado.
- Considerando toda a situação, ja é surpreendente que você soubesse por onde começar. - Kit suspirou, piscando os olhos para Michael no minuto seguinte. - Não era realmente necessário, nós normalmente cuidamos das pessoas que caem aleatoriamente em cima da gente.
- Há controvérsias. - Ches disse, coçando a parte de trás da cabeça. - De qualquer forma, não havia muito o que você pudesse fazer no estado em que estava. Felizmente Lady Black tem uma especialidade em materializar coisas, principalmente escudos.
- Bem ao menos ela leva jeito para a materialização, em compensação no resto...


A mulher de longos cabelos vermelhos pousou a mão no rosto, observando Kit de esguelha.


- Crós era uma vergonha como mestre.
- Ele não era tão ruim. - replicou Kit, abaixando a cabeça. Ela não queria pensar em Crós, ou no irmão e em Iris perdidos em algum canto do multiverso. Era muita coisa para seu cérebro lidar naquele instante. Além do que, em quesito periculosidade, aquela mulher era ainda pior que Crós, como uma ameaça a sua existência. - A menos que levemos em consideração teletransporte.
- Falando nisso, temos treino hoje, não é mesmo?

Kit empalideceu quase que de imediato, uma gotinha surgindo em sua cabeça. Ela recuou um pouco o tronco e apontou ansiosamente para Michael. - Charlote, eu... Hum, eu... eu tenho de cuidar dele por um tempo... provavelmente?
- É um robô, ele deve saber cuidar de si mesmo. - argumentou Chloe, inclinando a cabeça na direção do anjo de metal. - Sem querer ofender.

Charlote estreitou perigosamente os olhos e girou nos calcanhares, fazendo menção de deixar o local. Seus passos causavam reverberação suave no piso, por conta dos saltos... e talvez da aura mágica pesada que percorria todo o seu corpo.


- Faça como achar melhor. Eu estarei esperando na sala de treinamento. - ela olhou para Kit por cima do ombro. - Não se atrase mais que o necessário, está ouvindo?
- E... estou, sim senhora!

Kit fez um sinal de sentido, vendo a mulher deixar o aposento logo após, seus pelos anteriormente arrepiados voltando ao normal.

- Está ciente que quanto mais deixá-la esperando, pior vai ser, né? - Cheshire apoiou a cabeça na estante, abaixo dos braços, deixando um longo bocejo escapar.
- É inútil dizer isso, Kit sempre faz o que é melhor para as pessoas num geral. - Chloe argumentou por sua vez, endireitando o jaleco que vestia no momento e dando alguns passos para apertar a mão de Michael. - Michael, certo? Eu sou Chloe Blackwell, atualmente a representante estratégica e científica da Equipe Black.
- Eu sou Cheshire. - o próprio disse, erguendo minimamente uma das mãos em um aceno. - Prazer em te conhecer!
- Kit Black. - apresentou-se por fim a ultima garota, sorrindo docemente para ele. - E aquela ruiva assustadora que estava aqui é Charlote. Tem muitas pessoas aqui e costuma ser bastante agitado, sinto muito se não conseguiu descansar direito, é... considerando que precise.

- Sem problemas. Eu sou um robô, no final das contas - Disse Michael, sorrindo amigavelmente para Chloe.


Na verdade, a definição de robô já não cabia mais para Michael. Ele estava mais para um androide, e apesar de ter seguido as ordens de seu mestre, em nenhum momento ele foi obrigado a isso. Não era mais um trabalho, não depois da morte de Yahweh, era apenas algo que eles faziam por saber que era o certo e também para manter viva a memória de seu mestre. Como Helel depois viera a mostrar, eles poderiam ter mudado o curso de ação à qualquer momento, porém não o fizeram. Michael era livre. Porém, também não era. Ele era um escravo da sua memória, da memória de Yahweh e de seus ensinamentos, incapaz de olhar para outros lados, não podendo aceitar qualquer outro tipo de visão que não fosse aquela que lhe fora ensinada.

- É um prazer conhecê-la, Chloe. Obrigado por me consertar - Disse Michael, voltando seus olhos para Ches e Kit - É um prazer conhecer a todos, novamente, obrigado pela ajuda.

Michael era um servo da humanidade e apesar de seus sensores reconhecerem que todos ali haviam algo de diferente dos humanos de seu mundo, ele decidiu tratá-los com o respeito que lhes era devido, tanto por terem salvado ele como por serem pessoas que haviam o tratado bem. A educação sempre fora um ponto forte do ensinamento de Yahweh, no final das contas.

- Meu núcleo de energia foi devidamente consertado e é alimentado por energia solar, coletada pelas minhas asas. Teoricamente falando, é quase infinito, portanto não preciso descansar.

- Ele tem mais bom senso que vocês dois juntos, fantástico. - alegou Chloe, soltando a mão do robô e endireitando-se novamente. - Não há de que... Eu não o deixaria naquele estado, e afinal de contas, Kit me pediu.

Com a explicação de Michael sobre como seu corpo funcionava, Kit moveu a cabeça para um dos lados e coçou a bochecha. Ela havia preparado algumas coisas na cozinha desde que ele caíra enfermo, apesar de Chloe lembrá-la - pela enésima vez - que aquela criatura era um robô e provavelmente não se alimentaria como um humano comum. Uma gotinha surgiu em sua cabeça.

- Hum, então você não precisa comer também, né...
- Isso quer dizer que eu estou autorizado a degustar da canja que fizes-te mais cedo, Milady?
- Eu já disse pra não me tratar com formalidade, não disse? - Kit fez um biquinho para Cheshire, que respondeu colocando a língua para fora. - Ah, tanto faz, pode comer tudo se quiser.
- Oba!
- Um animal de estimação? - Chloe comentou consigo mesma, observando a reação de Ches, piscando algumas vezes e depois voltando seus olhos para Michael. - Bom... se você tem certeza de estar bem, eu posso ir... qualquer outro problema pessa a Kit para me avisar.
- Você já vai? - o questionamento de Kit foi quase choroso.
- Não posso me ausentar da sede principal por muito tempo. Não quando um ataque pode vir de qualquer lugar... infelizmente foi por isso que nos separamos, não é? Para evitar outro cerco, como Haradja fez.


Os ombros de Kit Black pareceram cair um pouco, e ela baixou a cabeça, totalmente derrotada pela argumentação da amiga.

- Sim, é isso mesmo.

- Ainda assim, eu preciso agradecer. Foi um trabalho exímio - Falou Michael, com um sorriso calmo em seu rosto.


Michael voltou seus olhos para Kit, levemente curioso. Chloe, que o consertara, deveria saber que os sistemas dentro dele eram mais avançados do que qualquer coisa em diversos outros mundos, e para mantê-los em perfeito estado existia um aparelho dentro de si, que constantemente utilizava o metal das partes danificadas, o refazia e consertava o estrago em questão de segundos. Quanto maior o dano, mais demorava para consertar, isso sem um uso de energia amplificando o trabalho de dito aparelho. Portanto, a garota sabia bem que ele tinha sim como ingerir alimentos, mas esses seriam devidamente destruídos dentro da garganta dele, fossem sólidos ou líquidos. No final das contas, ele realmente era incapaz de comer ou até mesmo de sentir gosto, fora apenas um toque extra de seu criador para ele sentir-se mais próximo aos humanos.

- Não, eu não preciso comer - Ele disse, por fim. E não era uma mentira, ele não possuía a necessidade de comer.

Chloe balançou vagamente a mão, um sinal claro para que ele esquecesse tal assunto, muito embora fosse possível entrever um arremedo de sorriso no rosto da jovem mulher. Ela não parecia uma pessoa muito dada à sorrisos, no entanto.

- Obrigada.

Cheshire sentou-se em uma das cadeiras do aposento e tampou a boca com uma das mãos, rindo suavemente.

- Foi o que Clhoe disse.
- Sim, foi o que eu disse.
- Okay, okay, eu já entendi! - Absolutamente derrotada, Kit não podia dizer mais nada, então ela limitou-se a morder a ponta do próprio polegar, pensando que logo teria um treinamento com Charllote, o que era muito pior do que canja desperdiçada (ou não tanto assim) e a partida de Chloe.

A jovem puxou uma fita de seu jaleco e deu um laço prendendo os cabelos cacheados em um rabo de cavalo. Ela espanou um pouco a roupa trocou o peso de um pé para o outro, piscando os olhos para os outros.

- Vão me acompanhar até a garagem?
- Eu vou comer. - argumentou Cheshire animadamente, sendo literalmente o primeiro a deixar o quarto.
- Eu levo você até lá. - Kit soltou o polegar que estava mordiscando até então e levantou-se também, sua cabeça voltando-se na direção de Michael. - Quer vir com a gente ou esperar aqui? Mesmo que não precise de descanso ou de comida deve ser meio chato ficar andando atrás da gente por todo o lugar. - ela coçou a bochecha. - Além disso... eu acho que vai querer retornar ao seu mundo... embora eu não possa resolver isso por enquanto.