A Entrada da Cidade

Um pouco próximo da entrada de Sybelle caminhava um jovem rapaz, aparentava ter seus dezesseis para dezessete anos, cabelos negros compridos que tocavam o começo de suas costas, olhos vermelhos espertos e sempre repletos de energia. Vestia-se com roupas comuns, uma camiseta branca com uma jaqueta marrom por cima, calças e botas para viagem, o que mais era notável era que, preso por uma tira de couro, estava algum objeto grande escondido por papel e couro claro. Formato um pouco cilíndrico que ia até perto das panturrilhas dele, algo que muitos notavam era que o tamanho era o mesmo de uma espada longa. Entretanto o rapaz carregava uma espada em sua cintura, logo não havia sentido manter uma espada em suas costas.


Apesar de ter um sorriso tranquilo, ele estava perdido. Tinha um contato com quem as vezes conversava para obter alguns trabalhos onde agia como ladrão, por vezes ele trabalhava sozinho, por vezes tinha que trabalhar em grupo, mas era dinheiro rápido e fácil no final das contas. Também era bem seletivo sobre quais trabalhos aceitava. Dessa vez fora um trabalho mais simples e que gerara um bom dinheiro, mas forçara-o à vir até Sybelle, algo que tinha evitado por... Motivos pessoais. Decidiu engolir a vergonha e caminhou na direção de uma garota para fazer algumas perguntas rápidas.

- Com licença, desculpe incomodar, é a minha primeira vez em Sybelle e eu acabei me perdendo. - Estava mais próximo da entrada do que imaginava, mas distante o suficiente para não saber para onde ia. - Poderia me dizer aonde fica a entrada da cidade?

A garota estava de costas, mas automaticamente virou-se em direção a ele quando foi chamada. Seus olhos piscaram, avaliando-o como se estivesse tentando definir se era algum desconhecido ou não. Ela tinha longos cabelos negros, que estavam presos numa intrincada trança, claramente não fora feita por ela. Seus olhos eram castanho-esverdeados, e pareciam mais verdes por conta da luz que incidia sobre eles. A moça tinha praticamente a idade dele, isso era visível, embora fosse mais baixa e franzina. Ela vestia-se com roupas relativamente comuns, embora curtas. Não no sentido de curto como algo vulgar, apenas havia muita de sua pele a mostra... talvez isso se devesse a estar fazendo calor no dia em questão.

Ela também carregava um buquê de rosas de cores variadas em seus braços, com certo cuidado zeloso, como se pretendesse dá-las a alguém, ou simplesmente tivesse acabado de recebê-las. Os olhos piscaram mais uma vez, a moça não parecia reconhecê-lo, bom, é claro, ele também não a conhecia.

- Ah, olá. Não está incomodando, não se preocupe. - ela abriu um sorriso amigável para ele e lançou seu olhar ao redor de ambos, não era como se estivesse perdida também, talvez apenas em pensamentos. Havia se tornado um hábito ruim que adquirira depois de um certo evento. - Uh, bem... você diz que quer voltar para a entrada? É nessa direção.

Apontou para a sua direita, eles estavam próximos aos Jardins Suspensos, e por ali certamente era o caminho mais rápido até retornar para a entrada de Sybelle.

- Você quer que eu te acompanhe até lá?

Não iria simplesmente assumir que toda garota bonita que encontrava segurando um buquê estava em um relacionamento ou em um encontro, não era mais jovem e tinha um pouco de tato. Ela parecia distraída com algo, portanto provavelmente deveria estar indo para algum outro lugar e ele ter chamado-a acabou por gerar aquela pequena confusão. Apenas limitou-se a abrir um sorriso amigável também, algo que fazia para todo mundo que encontrava, mas que parecia ser extra amigável quando se tratava de uma mulher com quem ele estava conversando. De algum jeito estranho, sentia que a conhecia. Não pessoalmente, é claro, jamais esquecia das pessoas que conhecia, mas ela deveria ser alguma pessoa importante porquê ele tinha certeza que já ouvira alguém muito parecida com ela ser descrita para ele.

- Ah, apenas se eu não estiver te atrapalhando muito, qualquer coisa posso ir perguntando no caminho. - Ele disse, erguendo ambas as suas mãos para ela e então notando que não havia nem mesmo dado o seu nome para ela. - Onde estão meus modos? Me chamo Ratatosk, é um prazer conhecê-la.

Ela olhou para o buquê em suas mãos por algum momento, eram realmente flores muito bonitas... depois de considerar por alguns instantes, a moça olhou mais uma vez em volta e fez um sinal para que Ratatosk permanecesse onde estava.

- Me espere apenas um segundo. Já volto pra te ajudar. - então ele viu-a dar uma pequena corrida em direção a uma mulher mais velha que estava um pouco mais adiante. Não era tão velha assim no fim das contas, mas certamente era mais que aqueles dois. Houve uma curta troca de palavras entre as duas e a mais jovem, para a qual Ratatosk havia pedido ajuda, entregou o buquê a outra e juntou as mãos na frente do corpo, dizendo mais algumas palavras. Não demorou muito para que corresse em direção a ele de novo. Estranhamente, a outra mulher não seguiu-a com o olhar, apenas manteve o buquê em seus braços e moveu-se em uma direção completamente diferente. - Oh, desculpe, seria um desperdício deixá-la murcharem.

Ela foi para o lado dele e ofereceu-lhe um curto sorriso.

- É um prazer, Ratatosk. Eu sou Kit. - e, dizendo isso, ela estendeu-lhe a mão para que ele apertasse.

- Eu que peço desculpas, não fosse por mim isso não teria sido necessário. - Ele então estendeu a mão para cumprimentá-la também, mas a ficha caiu e ele parou por um momento. - Kit? Kit Black? - Ele segurou gentilmente a mão dela, virando-a e dando um suave beijo nas costas da mão da mesma.

Apesar de seus... Costumes, aquilo não saíra como algo sedutor ou como uma espécie de flerte, fora apenas um cumprimento extremamente respeitoso. Ajudava um pouco que ele curvara-se um pouco perante ela e que o que disse à seguir saiu com um tom de voz tão repleto de admiração e carinho que realmente passou a imagem clara de que ele a respeitava muito. Ele soltou a mão dela e endireitou-se novamente, seu sorriso agora além de simpático tinha um leve toque de felicidade. Nunca pensara que teria a chance de conhecê-la pessoalmente.

- Eu sou muito grato à você, por tudo. - A guerra havia tirado muito dele, então era óbvio que seria grato à pessoa que botara um fim à ela. - Espero que isso não seja muito estranho, nem que esteja deixando-a desconfortável. Muito obrigado, senhorita Black, por tudo. - O sorriso dele novamente ganhou um novo toque de gratidão e em seguida ganhou mais um toque, pessoas que conheciam-no sabiam que ele tinha o costume de elogiar praticamente todas as mulheres que encontrava e Kit... Kit era especial entre elas. - Eu ouvi tanto sobre você, senhorita Black, mas ainda assim não consegui reconhecê-la. Bem, suponho que não hajam palavras suficientes para descrever a sua beleza.

- Tudo bem, de verdade. Você realmente parece precisar de ajuda. - ela era do tipo que gostava de ajudar, afinal de contas. Crescera para isso... nascera para ajudar as outras pessoas. Kit já ia questionar se ele era algum tipo de guerreiro por conta da espada, mas, antes disso, ele já havia ligado o nome a pessoa. Não que Kit fosse um nome tão exótico, mas... é, a aparência geral dela contribuia bastante para isso. - Sim, isso mes...

Ela corou um pouco, deveria estar acostumada a esse tipo de reação, mas nunca sabia muito bem o que fazer ou o que falar. Kit permaneceu parada por alguns momentos enquanto ele segurava a mão dela que acabara de beijar, então piscou os olhos e deu uma risada sem graça.

- Tudo bem, acho que é normal, mas... se eu pude ajudá-lo de alguma forma com o que fiz até então, isso já me deixa feliz.

Ela não julgava que tinha feito muito, na verdade, a guerra seguia o seu curso. Sua meia irmã, Haradja, a praga que havia tomado Diamond, ainda estava em sua fortaleza, enviando exércitos de criaturas ruins para derrubar as cidades do Reino. Kit e as pessoas que cuidavam dela e a treinaram, desde quando nascera, faziam o possível para manter a situação o mais controlada possível, mas haviam falhas... haviam perdas. Kit sabia o que precisava fazer, entretanto ainda não havia encontrado as ultimas pedras necessárias para selar a irmã.

Afinal, naquele mundo, imortais não podiam ser mortos. E, ao contrário de Kit que era apenas metade imortal, Haradja era totalmente.

- Eu acho que costumam exagerar um pouco e... você pode me chamar só de Kit, Senhorita Black é bem estranho, nós temos a mesma idade. - ela coçou a parte de trás da cabeça, um pouco mais tranquila. - Er... você acha? Digo... você está tentando flertar comigo?

- Não eu em específico, creio que temos a mesma idade, mas sei de várias crianças que adorariam agradecê-la.

Não estava mentindo, a guerra tinha seus custos e a presença de Kit estava diminuindo-os é claro, mas ainda assim haviam muitas pessoas que poderiam estar mortas não fosse a ação de Diamond em si contra Haradja e as ações de Kit também, óbvio. Ela se tornara, ou talvez sempre tenha sido, a face da resistência contra Haradja e muitos tiravam disso a inspiração necessária para continuar seguindo em frente, aquela força extra, aquele empurrão leve para poderem ver outro dia. Ratatosk tivera outras pessoas como inspiração, mas ver o efeito que Kit tivera em outras pessoas era o suficiente para ele. Em tempos de guerra, não era só de vitórias em combates que viviam as pessoas, era necessário alguém para erguer o estandarte da esperança. Para muitos, esse alguém era Kit Black.

- Certo... Kit. - Talvez se acostumasse com aquilo mais rápido do que o esperado, mas bem, não era como se tivesse esperado se encontrar com ela em algum momento. - Eu tenho certeza. E não, é só um elogio. - Ele disse aquilo rindo um pouquinho. - Acabamos de nos conhecer, meio cedo para flertar não acha? Além de que, não é necessário conhecer alguém pessoalmente para elogiá-la, afinal de contas. Perdão, te deixei sem jeito?

- Eu ouço bastante isso. - ela respondeu, coçando a parte de trás da cabeça. Parecia ser uma pessoa um tanto quanto humilde, que não gostava de chamar atenção demais sobre si, pelo menos não daquela forma. Havia um rubor suave colorindo as bochechas pálidas, ela sabia o que significava para as pessoas, e era por isso que ela lutava e tentava manter-se o mais firme possível, mesmo nas piores situações. A esperança não deveria morrer. Diamond entraria em paz um dia, e se ela precisasse lutar por isso, certamente o faria. - Sim... vou te chamar de Rat então, tudo bem?

Ela sorriu levemente.

- Tudo bem, er... - novamente aquele rubor subiu pelo seu rosto, chegando até as orelhas, e ela rapidamente ergueu as mãos e abriu-as frente a ele. - Oh céus, isso não pegou bem. Er... lamento se o ofendi de alguma forma, é que eventualmente... bom deixa pra lá.

Ela desviou o olhar, coçando a bochecha, e quando pareceu ficar mais calma voltou a olhá-lo.

- E você... é algum tipo de guerreiro? Ou as lâminas apenas estilo mesmo?

- Claro, Rat tem sido meu apelido por um bom tempo já.

Sabia bem que Ratatosk era um nome e tanto para pronunciar e que por vezes era melhor simplificar as coisas, a primeira pessoa que o chamara de Rat fora um de seus contatos que costumava arranjar trabalhos para ele que envolviam furtos, bem ele era um ladrão até aí era óbvio, mas os alvos sempre eram pessoas com mais posses que as outras. O motivo por ter começado a chamá-lo de Rat foi justamente pelo mesmo motivo que vários outros o fizeram, era mais rápido e mais simples, de começo não gostara muito uma vez que escolhera o nome Ratatosk para si e preferia que as pessoas falassem a coisa toda, mas depois de um tempo passou a gostar do apelido.

- Eu realmente te deixei sem jeito, perdão. - Ele disse, escondendo o riso com as costas de sua mão. - E não me ofendeu de maneira alguma, não se preocupe.


Ele olhou para sua cintura, onde estava aquela espada mais curta e então por cima de seu ombro para a espada que carregava nas costas. 

- Esta aqui eu não uso, ela é mais pesada e complicada de usar, mas é uma herança de família. - Ele disse, apontando com o polegar para a arma em suas costas, em seguida apoiando sua mão em cima do pomo da segunda espada. - Essa eu por vezes uso. Acho que o termo correto seria mercenário, mas dado os trabalhos que pego, eu diria que sou mais para um ladrão. Ou um ladino. O que soar melhor.

- Eu imagino... quero dizer, é mais simples. - uma gotinha surgiu no rosto dela enquanto Kit assentia vagamente com a cabeça, ela não sabia muito bem sobre ter apelidos, afinal seu nome era relativamente pequeno. Bem, um certo Deus do Ar costumava chamá-la de Gatinha-Meio-A-Meio, mas isso era uma exceção. - Um pouco... er...

Ela voltou a balançar, como se desejasse que ele esquecesse aquilo, e então inclinou um pouco a cabeça, dando passos para frente para analisar as duas espadas, uma após a outra. Entretanto, Ratatosk notaria que ela não estendera a mão para tocar nenhuma delas, talvez porque o movimento poderia ser visto como má intenção.

- Entendo, elas parecem realmente... - houve uma pausa, e então um suave franzir das sobrancelhas. - Você é um ladrão!?

Sabia bem que seus jeitos eram um pouco incômodos para certas pessoas, mas como ele mesmo dissera era apenas um elogio. E elogios poderiam soar vazios às vezes, também não podia dizer que nunca elogiara uma pessoa apenas para facilitar uma conversa, mas naquele caso era algo real e sincero da parte dele. Kit era realmente bela e apesar do ladrão ter escutado histórias sobre ela, ter ouvido pessoas descreverem ela, a beleza dela era ainda mais cativante do que nos meros contos ditos em uma mesa de taverna. E bem... Ratatosk sempre elogiava uma mulher, apesar de isso normalmente passar uma imagem muito mais flertadora, e desesperada talvez, era apenas parte de quem ele era.

- Bem, tecnicamente falando sim, apesar da maioria dos meus contratos envolverem roubar artefatos de algum templo ou local perigoso. - Ratatosk deu de ombros, normalmente outros que estavam no mesmo ramo que ele preferiam cobrir a verdade com mentiras, diziam-se exploradores, aventureiros e afins. - Bom, talvez eu esteja mais para uma mistura de caçador de tesouros e ladrão. Mesmo que eu só roube dos ricos, roubar é roubar no final das contas.

Kit ficou olhando para ele em silêncio, piscando os olhos com certa inconsistência e com os lábios entreabertos prestes a dar-lhe uma bronca, então ela simplesmente coçou a parte de trás da cabeça e suspirou, parecendo vencida.

- Roubar é errado, independente disso, mas eu entendo que você faça isso por não ter uma opção melhor.

Ela parecia um tanto quanto indecisa, Ratatosk provavelmente se questionaria se a moça iria revelá-lo às autoridades ou não. Entretanto, quando essa indecisão permaneceu, ela voltou a abrir os olhos.

- E se... e se você não precisasse mais roubar?

- Eventualmente a linha do errado e do certo desaparece, seja porquê a pessoa decidiu que não quer mais ver ela ou porquê na situação atual o certo e o errado não importam. Não sei dizer qual dos dois casos se aplica à mim, entretanto.

Ele deu de ombros novamente, era difícil importar-se com certas coisas naquela altura do campeonato. Se parasse para se questionar o quão imoral eram suas ações, o quanto estava ferindo o bem-estar de outras pessoas ou simplesmente se deveria ou não fazer aquilo baseado no que acreditava, jamais faria nada e provavelmente teria morrido de fome à muito tempo atrás. Entretanto não pareceu julgar Kit ou querer defender suas ações, aquilo era apenas uma explicação para o motivo de seus furtos constantes. E bem, depois de certas descobertas recentes ele passara a detestar certas parcelas dos ricos de Diamond.

- Bom, então não sei o que eu faria. Se coletar artefatos mágicos de locais abandonados conta como roubo, isto é. - Ele coçou sua nuca, parecendo confuso. - O que quis dizer com essa pergunta?

- O certo e o errado vão continuar do mesmo jeito, o que muda somos nós, e nós temos que nos esforçar o máximo possível para fazer as coisas serem melhores. Pelo menos é no que eu acredito.

Bem, era preciso ter essa visão para fazer o que ela fazia e lutar como ela lutava, afinal de contas. Kit era o tipo de pessoa determinada, ela preferia conversar a matar, mas sabia que não tinha jeito, as vezes precisava dar um fim rápido aos inimigos. Julgou que a situação de Ratatosk fosse de alguma forma similar.

- Hum... - ela parecia mais uma vez incerta se deveria continuar aquela conversa ou não. - Talvez... talvez você queira...

Kit parou de falar e jogou a longa trança, que já havia parado de frente para seu corpo com sua movimentação, para trás novamente. Ela realmente parecia numa batalha mental por algo, embora fosse impossível ter certeza do que era esse algo exatamente.

- O que você acha de trabalhar comigo, então?

- Cada um com suas crenças. 


Ratatosk pensava diferente do que Kit, mas não era completamente surdo perante às ideias dela. Havia verdade no que ela dizia, sempre deveriam se esforçar para fazer o com que qualquer situação seja a melhor possível para todos os envolvidos, mas para ele existiam poucas coisas que eram definitivamente certas e definitivamente erradas. Essas poucas bolhas de certeza que ficavam flutuando eram as que mais chamavam atenção, mas ele também gostava de notar as que sempre estavam mudando de lugar conforme fosse mais conveniente para quem observava.

- Trabalhar com você... Quer que eu roube para você ou que eu lute ao seu lado?

Ela deu de ombros num gesto comum, certas coisas eram inúteis de se debater. Principalmente por Ratatosk provavelmente ser alguém afetado pela guerra, ter wue sobreviver deveria ser sua força motriz.

- Eu não quero que roube pra mim! - ela argumentou, fazendo um biquinho. - Bom, talvez recuperar alguns artefatos seja de fato útil, mas...

Ela parou pra raciocinar sobre isso por mais algum tempo e meneou fortemente a cabeça, como que para parar de pensar naquelas coisas.

- A segunda opção, sim. Nós estamos sempre precisando de mais pessoas, mas... pedir isso talvez seja um pouco demais, afinal é perigoso...

- Bom, esse é um pedido que eu não esperava ouvir. - Ratatosk riu um pouco após falar aquilo, parecendo estranhamente tranquilo com aquela ideia. - Lutar ao seu lado, é? Bom, não vejo problemas nisso, apesar de saber me virar num combate direto talvez seja bom você saber que eu me encaixo mais no papel de um suporte para um grupo.


Dito isso Ratatosk em si tremulou, como se fosse um reflexo em um rio que tremulava levemente e desapareceu por completo aparecendo novamente encostado na parede. Era um ladrão excepcional por conta dessa habilidade em específico que aperfeiçoara conforme crescera, tanto para sobreviver como por um desejo próprio, era dono de um poder mágico grande o suficiente para permitir que ele criasse ilusões perante os olhos de outros ou diretamente na mente deles. No caso de Kit, ele apenas criara uma ilusão direta no mundo, não gostava muito de invadir a mente de pessoas boas como ela. 

- Se acha que um ladrão e suas ilusões podem ajudar você e o grupo, pode contar comigo. Eu já estava querendo me envolver mais diretamente nessa guerra, mesmo.

- Bem, eu prefiro que as pessoas estejam do meu lado do que contra mim. Não que você fosse se tornar meu inimigo de qualquer forma... - ela inclinou um pouco a cabeça para um dos lados. - Não iria, né?

Ela escutou-o e então viu-o tremular, era visível que, apesar de Kit não fazer nenhum movimento rude na direção dele, a garota ficou um pouco tensa, talvez esperando vir algum tipo de armadilha em sua direção. Mas Ratatosk apenas apareceu mais longe ainda dela, e Kit reprimiu um suspiro de alívio.

- Todo mundo pode ajudar, desde que o queira... e essa habilidade é fantástica. Magia lusória, tão legal! - os olhos dela brilharam um pouco. - Ah, mas como eu disse... vai ser perigoso. Realmente perigoso, você não se importa?

- Nunca. - Ele respondeu naturalmente, apesar da resposta ter sido rápida claramente não era uma mentira. - Como eu disse, sou grato à você e aos outros que lutam na guerra, jamais iria me pôr contra você.

Um voto de fidelidade meio estranho, normalmente estes vinham falando da honra de uma pessoa ou da bondade dela ou de seu desejo de ajudar, enquanto o de Ratatosk vinha apenas da gratidão que ele sentia por Kit. Não a culpava, e nem outros membros da equipe, pelas perdas que tivera na sua vida, até onde sabia tinham a mesma idade então não seria lógico culpá-la, porém principalmente por compreender que no caso dele não havia muito que poderia ter sido feito. Certas mãos foram movidas, palavras foram ditas e um vilarejo inteiro fora atacado e destruído pelas forças de Haradja. Era destas pessoas que tinha raiva, dessas mãos, dessas vozes.

- Agradeço os elogios. - Ele fez uma mesura, rindo. - É claro que não me importo, quanto mais perigoso é, melhor o roubo. Digo, melhor a aventura. Você me entendeu. - O rapaz coçou sua nuca, sua risada dessa vez saindo meio sem graça. - E com alguém tão bela como você me guiando, eu fielmente seguirei. E isso sim, foi um flerte. - Ele aproximou-se um pouco mais dela, sorrindo alegremente. - Ajudarei como puder, senhorita Black.

Ela inclinou um pouco a cabeça e sorriu de maneira doce. - Eu acredito nisso. Realmente.

A própria Kit tinha seus próprios traumas e suas próprias razões para seguir em frente. Ela carregara até ali um buquê de flores que não foram dadas por um namorado ou seriam oferecidas a um deus, mas sim colocadas sobre túmulos. Era assim que o mundo era, e era assim que ela não aceitava que deveria ser. Era verdade que, diziam as lendas, desde a rebelião de Ajax não houve um equilíbrio perfeito em Diamond. Entretanto, a chegada de Haradja tornara tudo que não estava indo muito bem antes, pior. Era como se ela tivesse sido enviada simplesmente para destruir o que já estava minando.

- Eu entendi, eu só quero que tome cuidado... se chegarmos a isso. - Kit pareceu momentaneamente séria ao dize-lo, como se quisesse deixar tal coisa gravada na cabeça dele. Apesar de ser um encontro completamente aleatório e um convite mais aleatório ainda, que não deveria ser estendido, definitivamente, para qualquer um, era verdade que eles precisavam de mais aliados. Mesmo assim, se ela pudesse evitar que a grande maioria dos seus se ferisse na guerra, ela o faria.

Automaticamente após o flerte, ela corou.

- Você... você realmente é uma pessoa bem diferente. - ela segurou a trança em suas costas e fitou o chão, depois olhou novamente para o rapaz e estendeu-lhe a mão. - Certo... temos um acordo, Rat.

Perda era uma parte natural da vida. ''Ganhar significa perder''. Não lembrava quando essa frase entrara em sua mente como uma lição verdadeira e inexorável, mas podia dizer de que desde que nascera ele ganhara muito, desde bens materiais até coisas mais importantes, como o amor de familiares. Entretanto ninguém caminha pela vida tendo apenas vitórias para contar, as perdas serão tão numerosas quanto e Ratatosk sabia bem que isso poderia gerar raiva, provinda da negação e da crueldade da vida, também não podia dizer que nunca havia culpado ninguém erroneamente, principalmente pelas mortes de seus entes queridos. Mas aprendera a lidar com suas emoções, a lidar com suas dores e apesar de muitas de suas perdas serem realmente culpas de outro, ele já não apontava mais o dedo para as pessoas erradas. Era um pequeno semblante de paz, uma paz certamente manchada, mas paz mesmo assim.

- Eu sempre tomo cuidado. - Ele garantiu, igualmente sério. Não sobrevivera até ali apenas para morrer assim que começasse a se dedicar por uma causa justa.

Ele riu baixinho com o comentário dela após o flerte. Sabia que suas atitudes eram bem únicas para alguém na situação dele, era mais fácil encontrar pessoas com modos parecidos em outros andares da vida, normalmente sendo as que tinham dinheiro sobrando. Mas também tinha o mínimo de bom senso de não ser mais um cara que corre atrás de saias, seus elogios sempre vinham sem intenção maldosa por trás. Já seu flertes possuíam um pingo de intenção, mas na cabeça de Ratatosk não passavam de elogios mais elaborados.

- Estarei ao seu lado quando desejar. - Ele apertou a mão dela, um sorriso mais tranquilo tomando contas de seus lábios.

Ela assentiu com a cabeça. Desde que nascera, Kit Black havia sido um alvo, e ela mal poderia contar quantas pessoas, conhecidas ou não, morreram tentando deixá-la intacta até o momento que fosse capaz de realmente poder revidar. Ela não se orgulhava de estar atrás dessas pessoas, na verdade culpava-se por isso. Se ela fosse forte o bastante, aquilo não seria necessário, mas... evidentemente, ainda havia um longo caminho a percorrer. Era bom que ela tinha amigos e aliados, até mesmo uma família para auxilia-la nisso.

Ela retribuiu o aperto suavemente e voltou a unir ambas as mãos em frente ao corpo. Por um momento a garota não disse nada, como se estivesse considerando qual seria o próximo passo. Nem sequer falara com os outros sobre aquilo, eles certamente... brigariam com ela.

- Hum, Rat... imagino que você tenha algumas coisas a resolver ainda hoje. E imagino que você já deve ter ouvido falar que nossos aliados as vezes moram conosco. - ela ergueu um dedo indicador. - Em Farem. Isso é algo que concorda, ou prefere ficar... imagino que seja por aqui? Onde você mora?

- Eu não tenho casa, não faria sentido ter uma já que estou sempre viajando.

Ele adicionou aquela última parte para Kit não se sentir mal por ter feito a pergunta, também não era uma mentira. Com seus roubos ele eventualmente conseguia dinheiro o bastante para ao menos alugar um quarto em alguma pousada ou para quem sabe começar a pagar por uma casa, mas ele vivia nas estradas e apesar da ideia de ter um lugar para chamar de seu ser bonita no papel, ele precisaria esperar para que a guerra terminasse primeiro e então poderia fazer o que realmente queria. Reconstruir sua antiga casa que fora destruída e queimada, não seria a mesma coisa, mas ele teria então o conforto de saber que a casa na qual crescera estava ali mesmo que apenas em aparência.

- Imagino que ficaria difícil se comunicar comigo se eu estiver sempre longe, então se realmente quiser posso ir morar com o seu grupo em Farem. Ou ao menos ficar por perto.

- Oh... - foi a primeira reação dela, mas ao ouvir a explicação, Kit pareceu ficar um pouco menos pesarosa novamente. - Er, bem... não é que eu não queira de verdade, é mais sobre o que for melhor para você e também...

Enquanto ela tentava se explicar, alguém bem mais alto se aproximou de ambos. Era uma mulher, mas claramente não era a mesma que Kit conversara antes de entabular uma conversa mais profunda com Ratatosk. Num primeiro olhar já notaria algo estranho nela, que ficou evidente logo depois: era uma híbrida, com aparência de algum animal que, num primeiro olhar, deveria ser um canídeo. As orelhas eram curtas, subindo pelos brancos como neve, ela possuía dentes um pouco mais pontudos que o normal, e um olhar mais afiado. Apesar de estar vestida com roupas que cobriam completamente a parte inferior do seu corpo, a camiseta que usava deixava evidente os braços peludos terminando em mãos que possuiam garras. Era visível, também, que a cor dos pelos ia do preto ao branco.

- O que é que você está fazendo, pirralha? Pandora disse que você tinha ido ajudar alguém...

Uma gotinha surgiu na cabeça de Kit e ela abriu um sorriso de tensão, mas não parecia ser de que aquela mulher era sua inimiga realmente. Ela estava mais para uma madrasta ou irmã mais velha bem mal humorada e severa.

- Hum... era a ideia mas isso virou meio que um recrutamento...