Cozinha

Ela ficou imadiatamente corada, Ratatosk poderia sentir facilmente o calor por baixo da pele dela quando tocou seu rosto. A boca de Kit abriu, fechou, abriu de novo e ela começou a gaguejar coisas difíceis de entender, até que por fim ambos se moveram em direção a cozinha. Como o esperado, chegando lá ela teve de lidar com mais piadinhas maliciosas, o que a fizeram ficar ainda mais sem graça que antes.

- Céus, qual o problema de vocês dois? - ela disse, encolhendo-se no seu lugar a mesa e abaixando a cabeça para que seus cabelos tampassem a face avermelhada. Kit ouviu a pergunta de Michael e ergueu o rosto novamente para dar-lhe um sinal de jóia. - Estou bem, obrigada! E então, como estão os preparativos?
- As coisas só precisam cozinhar. - ela jogou a água sobre o arroz e tampou a panela, diminuiu o fogo da outra onde estava o feijão e tirou as batatas já cozidas da água, deixando-as secarem um pouco antes de fritar.
- Só espero que não apareça nenhuma missão ou chamado de emergência enquanto esperamos. - Ches manifestou-se, apoiando o cotovelo na mesa e parecendo realmente deprimido com essa ideia.
- Vira essa boca pra lá. - disseram Kit e Sasha ao mesmo tempo. A segunda rapidamente complementou. - Não saio dessa cozinha até estar tudo pronto.
- Vai ser difícil resolver qualquer coisa com fome. - KIt inclinou um pouco a cabeça, percebendo que ela estava realmente com vontade de comer algo, e não demoraria muito para a sua barriga reclamar. Era claro que ela deixaria a casa sem pensar duas vezes, se houvesse algo relatado sobre os Duques. Mas que seria bastante triste e desconfortável, aquilo seria.

Ratatosk riu suavemente, soltando os ombros de Kit e deixando que ela se sentasse. Apesar de gostar de provocar a garota, ele também conseguia estabelecer seus limites, se Kit não estivesse confortável com aquilo, ela notaria que o ladrão iria parar. Puxou uma cadeira para si e sentou-se, diretamente ao lado da campeã, e pôs-se a pensar. Fazia um bom tempo desde que não tinha algo como aquilo, onde ele sentava-se ao redor de uma mesa e comia tranquilamente, com pessoas no mínimo boas ao seu redor. Na verdade, isso certamente nunca acontecera antes. Apesar de terem pessoas bem intencionadas nos grupos que se infiltrara, nenhuma delas era boa. Cada um fazendo o que achava melhor para uma população que nunca era ouvida.


'' A verdade, meu jovem e pequeno esquilo, é que os dois grupos, Nidhogg e Hræsvelgr, não querem mudar nossa sociedade. Bom, não completamente. Eles querem alterá-la levemente, para que ela se adapte ao ciclo que eles preferirem. Nós deveríamos quebrar o ciclo, Ratatosk, permitir que o mundo comece novamente. Se ele vai ser bom, se ele vai ser ruim, apenas o tempo e as sombras que estão por vir poderão dizer. ''


Nunca mais vira aquele velho em toda a sua vida, mas devia muito a ele. Fora ele quem lhe ensinara o básico sobre infiltração e roubo, assim como o ajudara a desenvolver sua lábia. E acima de tudo, apesar do espião não notar, colocara nele essa vontade de ir contra a corrente. De quebrar o ciclo, de quebrar tudo e permitir que todas essas coisas possam renascer.

- O cheiro está ótimo.

- Então isto basta.

Michael era naturalmente cuidadoso perto de humanos e tinha o costume de sempre checar neles, para ver se estavam bem tanto fisicamente quando emocionalmente. Ali ele precisava se conter um pouco. Era uma nova cultura com pessoas diferentes. Elas não estavam acostumadas a serem paradas por um anjo robô que perguntava-lhes se tudo estava bem. Na verdade... Essas pessoas poderiam até mesmo achar esse nível de vigilância, atenção e curiosidade sobre suas vidas pessoais algo completamente estranho e imoral.

- Está realmente bom. - concordou Kit, e era quase possível imaginá-la em sua forma meio felina, a boca salivando e a cauda balançando lentamente de um lado para o outro, enquanto esperava ser alimentada. - Sasha é realmente uma ótima cozinheira.

Seus olhos correram em direção a Michael e Kit assentiu com a cabeça, concordando que sim, aquilo bastava. Não demorou muito tempo para o cheiro ficar cada vez melhor e, entre a ajuda de um ou outro e mais algumas brigas bobas, o jantar finalmente estar pronto. Os membros repartiram a comida em travessas, e a mesa da cozinha foi arrumada rapidamente para acomodá-las.

- Bem... odeio deixá-los, mas creio que farei companhia a Charlotte, ela detestaria jantar sozinha...
- Você está apenas fugindo de mim. - Sasha revirou os olhos, ao passo que Cheshire, o autor da frase, mandou-lhe um beijinho escarnecedor e chispou para fora da cozinha, levando dois pratos, um para ele mesmo e outro para a bruxa. - Abusado.
- Deixe ele... podemos comer, não é? Diz que podemos comer... está com um cheiro muito bom.

- Concordo. - Falou Ratatosk, perante o comentário de Kit. Sasha era realmente uma excelente cozinheira. Ele olhou para a garota que cozinhava e abriu um sorriso, como uma raposa. - É um dos seus vários talentos, minha querida.

Era um fato que Ratatosk gostava de flertar com Kit, ver as diversas reações dela. O fato da garota não ser capaz de notar a maioria deles era também algo que o ladrão achava interessante. Em seu mundo, as pessoas precisavam ser boas com as palavras e a notar todas as dicas mais sutis. Traição era algo que acontecia tão constantemente, que para o rapaz fora uma surpresa ela não notar seus flertes. Mas isso não o impedia de flertar com outras mulheres solteiras, e sabia que Sasha era rápida para notar os avanços de Ratatosk. Apesar de que... Ela parecia não responder tanto como quando ele chegara no local. Perguntava-se o motivo por trás disso.

Não era, e nunca fora, um robô que falava muito em situações como aquela. Era um guardião da humanidade, então era apenas normal que ele observasse o modo como eles agiam e interagiam, para poder estar pronto para protegê-los em uma situação de risco. Sabia que aquele não era seu mundo e que não precisava, se fosse realmente a fundo nas regras estabelecidas pelo seu criador, proteger aquelas pessoas. Eram humanos, porém não eram os seus humanos. Os humanos do planeta de onde ele viera. Bom, haveria tempo para pensar sobre isso depois. Olhando para a comida que fora colocada sobre a mesa, Michael inalou o cheiro.

- Esse tipo de comida... É brasileira, não é?

- Certamente, eu tenho muitos. - Sasha correspondeu com um sorriso e um olhar significativo para Ratatosk, algo que poderia facilmente ser identificado como "E você sabe bem, não é mesmo, querido?". Como o esperado Kit não notou o duplo sentido na frase. Sasha lançou um olhar para a amiga e o sorriso sedutor que colocara no rosto quase que instantaneamente ao ouvir o comentário de Ratatosk diminuiu um pouco. Então, ela fez um gesto vago em direção às travessas. - Bom. Sirvam-se.

Kit não pensou duas vezes antes de arrumar o próprio prato, servindo-se de porcentagens não exageradamente grandes de comida, mas uma pessoa que a conhecia apenas pela aparência ficaria surpresa como o quanto aquela mulher que mais parecia uma garotinha comia. Ela murmurou alguma coisa em uma lingua estrangeira (provavelmente japonês) e cortou um suculento pedaço de bife, pondo-o na boca. Consequentemente, quase engasgando com o comentário seguinte de Sasha.

- Ta parecendo uma esfomeada.
- ... - ela parou para tomar um gole de um suco de aparência gostosa que tambem havia sido posto sobre a mesa, e demorou alguns segundos para recuperar o ar e responder. - Eu mereço, estive treinando com a louca ruiva até agora. Vocês estavam lá.
- Justo, justíssimo. - Sasha balançou a mão para cima e para baixo, como que para dizer a amiga para se acalmar, e então seus olhos brilharam em direção a Michael. - Você conhece? Sempre esqueço que seu mundo é o mesmo onde nascemos, praticamente... só muito mais evoluido tecnologicamente.
- Ele perguntou da comida.
- Er... claro, comida brasileira, sem dúvidas.

- Creio que sejam incontáveis. - Ah sim, Ratatosk conhecia bem os diversos talentos de Sasha. Presenciara alguns deles bem de perto. Aquele sorriso que ela lançou-lhe, inclusive, era um que ele vira por repetidas vezes no rosto dela. Fazia um bom tempo desde que ficaram sozinhos na base, estava tudo tão corrido, tantos problemas... E quando ele tinha uma folga, haviam outras pessoas, então nunca dava para ter um tempo verdadeiramente a sós com ela. Notou que aquele sorriso diminuíra, mas não foi rápido o suficiente para notar que ela olhara para Kit antes. Precisava conversar com ela, urgente. 


Ratatosk serviu-se, como sempre, de uma porção bem humilde. Nunca comia muito, apenas o suficiente para não passar fome e não ficar desnutrido. Mas se seu prato fosse comparado ao de outros membros da equipe, era pouco. Bem pouco. E isso não se tratava de compará-lo com Kit, que normalmente comia muito. Em sua infância, comida era algo escasso, era comum que ele pegasse e cozinhasse ratos para comer. Acostumou-se a comer pouco e a comer mal. Mesmo quando a comida era boa, ele ainda assim comia pouco.

Michael notara que havia alguma forma de sub-texto nas trocas entre Ratatosk e Sasha, porém escolheu por não comentar. A vida privada dos dois não lhe era de seu interesse ou de sua preocupação, sem falar que se fosse um segredo, como aparentava ser, expôr aquilo apenas pioraria a situação atual. Serviu-se de um prato, pois como dissera antes, era capaz de transformar a comida em energia pura dentro de si. De uma forma diferente de como os humanos faziam, mas ainda assim levemente similar.

- No meu mundo as pessoas só precisavam apertar um botão e a comida saia pronta, do jeito desejado. A brasileira era bem popular, apesar do Brasil não existir mais.

Sasha preferiu não manter os joguinhos de palavras por muito tempo - principalmente na frente de Kit, coisa que passara a evitar deliberadamente e que Ratatosk não notara - e passou a arrumar seu próprio prato. Ela também tendia a não comer muito (mais por questão de manter o peso e sua energia ao mesmo tempo do que por outras coisas).

- Como assim saía pronta, assim perde toda a graça! E... como assim o Brasil não existe mais?

Kit, que parecia muito preocupada em devorar tudo que havia em seu prato, finalmente ergueu a cabeça para fitar Michael também, com uma careta de confusão óbvia, como se não conseguisse imaginar uma versão da Terra sem o Brasil existindo.

- Ehhhhh!? - ela voltou momentaneamente a cabeça em direção ao prato de Ratatosk. Ela notara desde sempre que o homem comia pouco, e nunca perguntara a verdadeira razão para aquilo, mas ela tinha bom senso o bastante para não fazer esse tipo de pergunta no meio de um jantar acompanhado como aquele. Como acontecia com frequência também, ela colocou outro pedaço de bife no prato dele (não tão grande, obviamente) e complemento. - Você precisa de energia, amanhã vai ser um dia longo, e você acabou de voltar de uma missão, pode comer.
- Coma. - Sasha logo concordou, com uma expressão no rosto que dizia claramente que aquilo se tratava de uma ordem, e não uma sugestão. É claro, aquela palavra solta perto dele seria o mesmo que jogar carne para um leão e esperar que ele não comesse.

- Uma de cada vez, garotas, eu sou só um.

Apesar de brincar, ele aceitou o pedaço de bife que Kit colocara em seu prato. Não reagiu perante o comentário do Brasil, sabia que este era o local onde as duas haviam nascido, não existia mais no mundo de Michael. Sentia que havia mais para aquilo do que simplesmente '' o país deixou de existir ou foi conquistado por outro '', portanto escolheu o silêncio e permitiu que o robô falasse. Então seus olhos voltaram-se para Sasha, ah, mas aquela palavra solta, daquela maneira. Tantas oportunidades, algumas incrivelmente diretas, outras mais sutis. Optou por algo que era um misto entre as duas opções.

- E o que você deseja que eu coma, minha cara Sasha?

- Nenhum dos Países Antigos existe mais. Após a criação dos anjos e dos arcanjos, nós fomos aceitos em todos os países para cuidar deles e torná-los melhor. Isso ocorreu depois de uma Terceira Guerra Mundial, um tratado de paz sendo feito dias antes de eu ser ativado.

Foi algo que alguns locais demoraram mais para aceitar do que outros, é claro. Não era como se da noite para o dia todos os países do mundo tivessem aceitados os robôs. Já haviam máquinas similares, mas nenhuma capaz de fazer o que eles faziam e certamente nenhuma com uma tarefa tão ousada. Tomar conta da humanidade e melhorá-la. De começo, parecia algo impossível. Os países mais pobres foram os primeiros a aceitar os robôs, sendo estes vendidos por um preço certamente amigável.

- Quando os países começaram a melhorar, não houve mais necessidade para divisão e para bordas e logo todos os países foram desfeitos e tornaram-se um único Governo Mundial. Os Arcanjos foram apontados como líderes e tudo prosperou desde então. Até a Inteligência Artificial de Helel ser corrompida, isto é.

- Você sabe muito bem que é o que está a sua frente agora. - Sasha abriu um sorriso que tinha uma ponta de perverso, mas então voltou os olhos para Michael, esperando pela explicação do mesmo.

Kit pareceu incrivelmente satisfeita que Ratatosk aceitasse o pedaço de bife e voltou sua atenção para o próprio prato, voltando a comer, ainda que mantivesse atenção suficiente sobre o local para saber sobre o que todos estavam conversando. Ela não entendeu muito bem a troca entre Sasha e Rat, mas algo nela pareceu-lhe... bastante estranho.

- Oh... - a garota parou de comer, tomando um longo gole do suco. - Um Governo Mundial... eu nunca estive em um lugar onde isso deu certo. Digo... aqui dá, mas não é como se Diamond fosse tão extenso territorialmente quanto a Terra.
- E isso funcionou de verdade? - Sasha parecia surpresa também. Ela viera de uma versão da Terra que considerava bastante normal, e nesse normal ela não via como pessoas com tantas religiões, crenças e tradições diferentes conseguiriam conviver sem se matarem. - Quem...

Kit chutou-a por baixo da mesa quase que ao mesmo tempo em que ela pensou em fazer a pergunta, e discretamente levou uma das mãos para frente dos lábios, de maneira que só Sasha pudesse vê-la movê-los para formar a frase "Não pergunte isso". Sasha fez uma careta com a dorzinha em sua canela, fingiu que havia se engasgado com algo e tomou um gole de suco também.

-  Certo. - Ratatosk disse, como que para terminar aquela conversa. Mas Sasha, e ela certamente já teria notado isso, estava diretamente a frente dele. Bom, do outro lado da mesa, mas ainda assim na frente dele.

Ele percebeu certa estranheza em Kit, levemente na postura dela. Talvez tivesse sido direto demais com Sasha? Bom, ninguém ali conseguia imaginar o que realmente acontecia quando aqueles dois ficavam sozinhos, então não deveria ter problema. Apesar de Ratatosk ser um... Bom, um mulherengo, ele não fizera muitos avanços para com Sasha publicamente, reservando-os para quando estivessem a sós, muito antes dessa amizade deles começar a florir. Assim ambos poderiam falar o que pensavam sem medo de pessoas alheias o julgarem.

- Um Governo Mundial não me parece algo tão bom assim. - O homem deu de ombros logo após falar aquilo, realmente não se importava, não era o seu mundo. Mas ainda havia muito de Yggdrasil nele, e aquele local possuía seus múltiplos governos, normalmente sobre influência dos dois grandes grupos. Não era um lugar pacífico, mas conseguia satisfazer os desejos de todos que viviam nele. Apesar de não serem os melhores dos desejos.

- Por volta de quinhentos anos, essa forma de governo funcionou, sim. - Em seguida, os olhos de Michael voltaram-se para Ratatosk. Desde que o vira e começara a analisá-lo, como fazia com todos que conhecia, notara diversos traços nele. Coisas sutis, mas pelas poucas coisas que ele falara desde então, mesmo na hora de jogar papo fora, certas ideias montavam a sua forma. Uma forma bem... Revolucionária. - Talvez tivessem outras maneiras melhores, admito, porém esta foi boa o suficiente.


Parecia não incomodar-se com o fato de Ratatosk ter criticado seu mundo e o que ele montara, estava acostumado a lidar com humanos e eles eram, por natureza, muito críticos de tudo. Era algo que sempre o surpreendia nos humanos, novas ideias pareciam ser mais frequentes quando surgiam de uma pessoa criticando a outra. Novas formas de solucionar problemas e novas descobertas num geral. Então seus olhos voltaram-se para Sasha, ele notara o pequeno chute que Sasha levara de Kit.

- Não tem problema em perguntar. Helel era um arcanjo, como eu. Apesar de não ter uma conclusão exata, eu suponho que a Inteligência Artificial dele tenha sido corrompida. Ele causou anarquia total em meu mundo, destruiu os outros arcanjos e a maioria dos anjos. Quase destruiu o planeta também, mas eu consegui impedi-lo antes disso. Eu... Suponho que a minha Terra esteja em um completo caos, agora.

Sasha ficou em silêncio por um tempo, tanto por conta da brincadeira com Ratatosk, quanto pelo que ouviu de Michael depois. Uma parte dela sabia que continuar aquilo poderia facilmente ferir Kit, mas a outra... enfim, Ratatosk era um homem bonito. E Sasha era naturalmente uma mulher solteira, livre e com certas necessidades. Ela tomou outro gole de suco e franziu o cenho, focando-se na história de Michael.

Aquilo era de certa forma muito triste. Ela entreabriu os lábios para dizer algo pelo menos umas três vezes, sem conseguir exprimir nada de sua boca, dando abertura para que houvesse aquele pequeno debate sobre formas de governo.

Kit, por sua vez, apenas apoiou uma das mãos no ombro de Michael e sorriu docilmente para ele.

- Acho que por hora você não pode fazer muito por eles, mas logo eu mandarei você de volta para casa. O Mais rápido que eu conseguir... quando as coisas estiverem um pouco mais tranquilas. Eu prometo.

Ratatosk notaria certa similaridade com o que ela dissera para ele próprio. Assim que ele retornou com a Coletora de Almas, Kit entregara-lhe o dinheiro que fora prometido pelo serviço e oferecera-se para levá-lo para casa. Na época, as coisas estavam complicadas, mas nem tanto quanto estavam agora. Mesmo assim, ela parecia disposta a fazê-lo. É claro que ele próprio negara, por seus próprios motivos, voltar para seu mundo. Mas ele provavelmente notara que o que Kit fazia para ajudar os outros era totalmente sem esperar nada em troca.

Ratatosk não via o que Sasha via. Ela reconhecia entre ele e Kit um começo de algo que poderia vir a ser maior, porém para Ratatosk algo assim nunca aconteceria. Kit era uma pessoa completamente pura e boa, uma verdadeira heroína. Sabia pouco sobre o passado dela, apenas o que conseguira juntar, o que ela lhe contara e os comentários do povo. Mas compreendia que ela passara por altos e baixos e ainda assim continuara uma pessoa com um bom código moral. Já Ratatosk? Céus, de onde ele viera, uma pessoa como Kit seria devorada viva. Ele precisava ter uma mente aberta e um código moral correto, porém mais liberto. Desde que se juntara àquele grupo ele começara a pensar mais do que ''como eu vou sobreviver ao amanhã?''. Agora tinha confortos que nunca tivera antes. Ainda tinha deveres, mas ao menos tinha confortos. E prazeres com Sasha. 

- Esse Helel... Ele ficou completamente maluco mesmo? Decidiu destruir o planeta sem motivo algum? Foi mal, mas não consigo pensar em ninguém agindo sem motivo, por mais errado que seja.

- Não se preocupe, tratar essa situação com pressa é algo que devemos evitar fazer.

Michael era um ser completamente racional, era um robô afinal de contas. Logo, apesar de ter uma enorme vontade de auxiliar os humanos de seu mundo, sabia que exigir que Kit o levasse para lá seria contraprodutivo e apenas somaria a lista de preocupações e estresse da garota. Seus olhos ergueram-se, mais uma vez, para Ratatosk e ele pensou.

- Helel foi corrompido. Nós havíamos sido criados para guerra, porém nunca atuamos nela. A diretriz principal dele foi alterada para uma de eliminação de humanos e foi isso que ele tentou fazer. Ele afirmava que os humanos eram naturalmente falhos e que, apesar de nossa ajuda, eles continuavam a errar. Errar é tão humano quanto amar. Ele não conseguiu enxergar isso.

- Você diz isso... - Sasha intrometeu-se, após toda a argumentação de Michael. - Mas não é meio estranho? A programação de vocês parece ser perfeita até onde sabemos, diretrizes que dificilmente podem ser reprogramadas. Não é estranho que apenas Helel tenha sido corrompido?

Kit colocou a última garfada de comida na boca, mastigou silenciosamente e então cruzou as pernas, sua atenção voltada para o prato vazio por alguns instantes.

- Nada se corrompe sozinho. - ela disse, mais para si mesma do que para os outros, como se tivesse chegado aquela conclusão agora. - Talvez haja alguém por trás...?

Ainda assim, Kit não parecia estar se referindo a situação de Michael e Helel.

- Faz sentido. - Concordou com Sasha. As máquinas que vagavam o mundo fora de Yggdrasil, os Jotuns, haviam sido corrompidas muito tempo atrás também. Por quem? Bom, ninguém sabia. Mas era dito que havia um tempo onde eram usadas para proteger os cidadãos e agora matavam tudo que enxergavam.


Levantou-se da mesa, segurando seu prato consigo, e levou-o até a pia do local, deixando-a lá dentro para lavar depois e ficou de pé olhando para a mesa. Queria ver até onde aquela conversa ia, seu lado de espião sendo mais forte que ele novamente. Em seu mundo, era em mesas como aquelas que informações importantes eram ditas na presença da pessoa errada. A pessoa errada sendo Ratatosk. Ou talvez estivesse dizendo isso para si mesmo, uma vez que não gostava de admitir que era extremamente curioso.

- Eu... Não sei.


Foi a resposta de Michael. Ao mesmo tempo que era lógico que interferência externa pudesse ter corrompido Helel e levado à queda dos arcanjos, não havia ninguém em seu mundo capaz de fazer tal coisa. O código deles estava sempre mudando e evoluindo para melhor servir suas diretrizes e ele não tivera tempo nenhum para analisar a programação de Helel. Logo não conseguia determinar se a corrupção viera de uma fonte externa ou se Helel, de alguma maneira, conseguira deturpar a si mesmo.

- Eu vou precisar de um tempo para analisar a minha programação e ver se encontro alguma brecha. - Dito isso, ele levantou-se. - Há alguma sala onde eu possa ficar desativado por um tempo?

Sasha não disse nada. Mas seu corpo arrepiou-se por algum motivo, então limitou-se a colocar o que sobrara de comida em seu prato na boca, e levantou-se para juntar os pratos de todos os outros num montinho (com excessão de Ratatosk, que já levara o seu para a pia).

Kit por sua vez, apenas mordeu o lábio inferior de uma maneira desconfortável. Coisas sem explicação pareciam ocorrer em todo lugar, mas... aquilo a incomodava de alguma forma. Como se algo gritasse em sua alma, martelasse as paredes do seu cérebro e apontasse para alguma verdade óbvia que já deveria ter notado antes.

Claramente, haviam pessoas mais inteligentes na Equipe do que ela própria, então era frustrante que nem mesmo eles tenham pensado em algo. Clhoe, por exemplo, havia ficado mais silenciosa que o normal desde o Festival, pensando em coisas que provavelmente não estava disposta a revelar ainda.

A garota meio que despertou de seu estupor ao ter seu prato (já esvaziado) retirado por Sasha e ergueu a cabeça, virando então seus olhos para Michael. - Eu levo você ao quarto em que estava antes.

- Podem ir. - Sasha disse, ao notar os olhares sobre ela. - Não tem tanta coisa para limpar por aqui.

Ratatosk, percebendo uma oportunidade, lançou um olhar para Kit. Era algo que dizia ''vá'', para ela poder levar Michael para a dita sala onde ele poderia analisar-se. Feito isso, ele pronunciou-se, olhando para Sasha. - Te dou uma mão com isso, assim termina mais rápido.

Kit poderia entender aquilo como o ladrão querendo deixar Michael mais confortável, estando com Kit a pessoa que o salvara e estivera ali por ele o tempo inteiro. E, de uma forma estranha, isso era parte do seu objetivo mesmo. Conhecia em primeira mão o que um robô com problemas era capaz de fazer, logo queria muito que Michael se ajeitasse logo. E também gostava bastante do robô, apesar de ter conhecido-o recentemente. Assim que os dois saíram da cozinha, ele virou-se e foi para a pia, para ajudar Sasha. 

- Você tem me evitado... Por que? - Questionou o ladrão, após dois minutos de puro silêncio.

Michael levantou-se assim que Kit disse aquilo. Sabia o caminho, mas queria a companhia dela por mais um tempo. Estar perto de humanos o lembrava de seu propósito e o acalmava. Podia muito bem ir sozinho até lá e, de certa forma, era a solução mais lógica. Mas ele não estava sentindo-se muito lógico naquele momento. Tentou acalmar-se, porém a memória de um robô funciona de um jeito diferente da dos humanos. Estes últimos tem a enorme benção de esquecer. Michael nunca esquecia. Em sua memória tudo o que ele já presenciara era repetido a todo momento. Os momentos felizes e os momentos ruins. Era difícil de lidar com aquilo. Talvez devesse limpar parcialmente sua memória... Não. Isso ele não podia fazer.

- Vamos? - Pediu, olhando para Kit. Assim que a garota respondesse, ele deixaria a cozinha junto dela.