Sala de Treinamento

Kit Black preferiu não responder a ultima pergunta (ou constatação) do anjo, muito embora um treinamento com Charlote fosse muito similar àquilo. Sasha, por sua vez, apenas riu.
Eles por fim adentraram uma grande sala que por aparência parecia ser tão tecnológica quanto Michael, mas se ele reparasse bem haviam claros traços de magia no local. Ao invés de aparecer um "ambiente" propício para o treino, porém, não havia nada ali, a não ser um divã onde a bruxa de cabelos vermelhos estava esparramada, com um livro aberto em um dos encostos do mesmo e os olhos fixos neste. Ainda assim, fosse pelo barulho, pela presença ou só por intuição, a voz dela ergueu-se para afirmar, categoricamente:

- Está atrasada, apesar de tudo... quanto aos dois, sugiro ficarem na arquibancada, hoje vamos treinar teletransporte...

Antes que alguém questionou-se sobre a falta de arquibancadas no lugar, um circulo um pouco mais alto de cadeiras subiu das partes externas da circunferência que era a sala e o seu interior modificou-se para uma arena, ficou maior do que era esperado naquele espaço.

- Uh... vamos por aqui, por aqui. - Sasha pegou Michael pela mão e puxou-o em direção às arquibancadas, enquanto Kit lançava um olhar desolado para ambos, como quem questionava por que estava sendo deixada sozinha.
- Mas teletransporte...? - era visivel o nervosismo dela enquanto questionava sua mestra. - Nós não podemos voltar para as aulas de voo?
- És visivelmente inútil tentando voar, talvez seja melhor refinar seu equilibrio do que isso... e não foi você mesma que disse que podiamos passar pra outro tópico?
- Eu disse, mas não para teletransporte!

Charlote cruzou os braços, erguendo uma sobrancelha enquanto levantava-se do divã e o mesmo desaparecia, só deixando o livro flutuando ao seu lado.

- Eu vejo, eu vejo... afinal, és uma aluna daquele traste, e pedir para ele completar um teletransporte decente é complicado. - um sorriso que tinha algo de muito maquiavélico surgiu em seu rosto. - E é justamente por isso... que você vai aprender como deve fazê-lo.

Michael calmamente se deixou ser guiado por Sasha até as arquibancadas que haviam aparecido, sentando-se tranquilamente ao lado dela e pondo-se a analisar a sala. Era uma tecnologia tão avançada quanto a de seu mundo, na verdade eles poderiam até mesmo recriar uma sala daquelas no mundo de Michael, mas nunca houvera a necessidade para algo como aquilo, portanto esse tipo de coisa nunca existira lá. Após a troca de palavras entre Kit e Charlotte, Michael voltou seu rosto para Sasha.

- Kit possuí problemas com seu teletransporte? - Ele perguntou em um tom de voz baixo, para não atrapalhar o treino que ocorria.

- Sim. Bom, Crós, o mestre real dela - e ela fez aspas com os dedos ao ditar a palavra "real" - era péssimo nisso também, sabe? Ele quase nos matou umas tantas vezes tentando nos salvar. Bom, de qualquer forma podemos dar-lhe o crédito de conseguirmos sobreviver de mortes certas graças a interferência dele. De alguma forma, quando ele passou a ensinar a Kit, essa incapacidade acabou sendo replicada por ela... não sei dizer o porquê.

Ela deu de ombros com simplicidade.

- Todas as vezes que ela tenta, bom... não chega exatamente no lugar que quer. Às vezes é menos problemático como surgir um pouco acima do chão, e outras ela aparece a quilômetros de altura. É bastante aleatório... mas parece que todos nós pegamos um certo trauma de teletransporte por causa dele, e isso não ajuda muito.

Após mais uma troca de palavras, Kit deu-se por vencida e foi até o centro da sala, assentindo enquanto Charlote lhe explicava pela enésima vez o conceito básico de teletransporte, que consistia em focar sua mente em um local onde pretendia aparecer, depois imaginar-se desvanecendo e aparecendo nesse exato local, enquanto liberava magia para fazê-lo. Parecia bastante simples, mas não o era. Após alguns minutos em que Kit tentava desaparecer e reaparecer em lugares específicos com suaves erros de alvo, a bruxa pareceu impacientar-se e criou uma labareda de fogo alta, que começou a lançar em direção a garota.

- Char... espera... ahhhh!

Kit desviou pelo menos uma dúzia de vezes do fogo usando seus próprios poderes felinos antes de Charlote passar a instruí-la.

- Você está desviando, pare de desviar!
- Você tá querendo me matar ou o quê?

Apesar de parecer uma situação bastante perigosa, havia certa comédia nela, o que fazia Sasha tampar a boca para não deixar tão evidente sua risada.

- Compreendo.

No mundo de Michael, o teletransporte era feito através de máquinas e funcionava apenas para robôs. Humanos tendiam a perder partes de si durante teletransportes. Porém ali a magia reinava, portanto não havia o perigo de Kit perder uma parte de seu corpo. Ou ao menos era isso que parecia, uma vez que ela não havia perdido um braço durante um dos teletransportes. Mas, se não fosse se ferir devido a magia, certamente iria se machucar com os ataques de Charlotte.

- Ela está atacando a Kit para forçar ela a acertar os teletransportes ou porque está com raiva mesmo?

- Vai saber... acho que um pouco dos dois, talvez? - Sasha inclinou a cabeça, parecendo bastante pensativa sobre o assunto, antes de dar uma outra risada. Diante da tranquilidade dela em ver a amiga sendo caçada por fogo, era de se imaginar que Kit não sairia muito machucada dali. Bom... em teoria.

Enquanto isso, abaixo deles, Kit continuava correndo de um lado para o outro da sala, exaustivamente tentando evitar o fogo que era lançado sobre ela. A garota caiu e rolou umas tantas vezes, fez poses praticamente impossíveis para desviar outras tantas e conseguiu manter-se incólume... infelizmente, sem se teletransportar uma única vez.

- Eu já não disse que você tem de teletransportar, criatura!?
- É difícil me concentrar quando estão tentando me cozinhar viva!
- A maior parte das vezes que você precisar da habilidade o inimigo vai querer te matar, então tente mais!

Sasha acomodou-se na sua poltrona, ainda observando toda a discussão e "tentativa de assassinato" que ocorria, e então parou de rir.

- Mas pensando bem ela tem razão... seria ótimo se Kit domina-se esse tipo de magia.

Se realmente era um costume entre as duas onde Kit era constantemente atacada, Michael achou que não deveria interferir. Sem falar que, apesar de ser claramente muito arriscado, o método de Charlote poderia vir a nutrir bons resultados. Porém, observando aquilo, era claro que Kit estava mais focada em desviar-se do que tentar aproveitar a oportunidade para se teletransportar. No final das contas, aquilo poderia funcionar ou não levaria a lugar nenhum. Michael não possuía dados suficientes para realizar um cálculo e ver qual método realmente ajudaria Kit a teletransportar-se.

- No meu mundo o teletransporte era feito por máquinas, mas ainda não havíamos encontrado um método seguro para humanos o utilizarem, portanto normalmente eram robôs que usavam para transportar-se de um lugar para o outro - Contou Michael, inclinando-se e observando Kit - A habilidade de simplesmente aparecer onde se deseja seria excelente na atual situação.

- Me faz lembrar de uma aparatação que deu errado em Harry Potter. - Sasha moveu sua atenção do "campo de batalha" para ele novamente. - Oh, bem, você não deve saber o que é Harry Potter. Basicamente as pessoas sumiam de um lugar usando magia e apareciam em outro, e quando algo dava errado uma parte do corpo delas sumia. Era um pouquinho perturbador, embora no livro ninguém relevante tenha se machucado muito sério com isso. A propósito, isso é uma série de livros... e de filmes também. Você sabe o que é um filme não é?

A chuva de questionamentos parou quando Kit de fato, após ser cercada pelas chamas mortais de Charlotte, viu-se pressionada a ponto de desaparecer. Ela reapareceu no ar, um pouco abaixo do teto alto da sala, e despencou, conseguindo cair de pé, como um bom gato. Ainda assim, era visível que o teletransporte não saíra perfeito, nem de longe.
A bruxa virou-se mais uma vez para ela, o fogo enredando-se para circundá-la.

- Foi péssimo, mas pelo menos você teletransportou. Continue assim...
- O que...?

Antes que Kit pudesse argumentar, mais uma vez, uma tempestade de fogo ia em sua direção e começara tudo outra vez.

- Bem, isso é verdade. Mas mais do que uma forma de transporte, é uma boa técnica de defesa e esquiva também. - Sasha suspirou, enrolando uma mecha curta entre os dedos. - Uma pena que não nasci para a magia como Kit e Chloe. O máximo que posso fazer é mirar e atirar uma flecha.

- Sim, e sei o que é Harry Potter também - Michael riu baixinho - No meu mundo, entretanto, o livro já era bem antigo e os filmes haviam sido refeitos algumas vezes.

O mundo de Michael era, afinal de contas, a Terra. Porém, os anos estavam muito mais avançados do que os da Terra de Kit e Sasha. Haviam se passado, aproximadamente, 4000 anos. Muito tempo, um tempo absurdo na verdade. Era apenas natural que a tecnologia que compunha Michael era tão avançada e que ele estivesse citando termos fantasiosos demais de uma maneira muito casual. A humanidade apenas não deixara a Terra por medo. Medo de que uma súbita expansão pudesse fazer com que os erros do passado fossem repetidos em uma escala muito maior.

- Cada um contribuí da maneira que pode. No momento pode não parecer muito, mas tenho certeza de que você é indispensável.

- Que diabos, você vem tão do futuro assim? - ela entreabriu os lábios rosados, numa expressão perplexa. Bom, considerando que ele era um robô tão avançado (e perfeito em vários sentidos) isso não deveria ser uma surpresa tão grande, mas aparentemente Sasha ainda via-o mais como um anjo do que como um ser criado pelo homem. - Eu não consigo nem imaginar que idiota faria um remake daqueles filmes, remakes nunca dão certo!

Diante do comentário dele, ela corou um pouquinho e deu uma tossida suave, fingindo estar bastante orgulhosa daquilo.

- Sim, sim... eu acho que sou mesmo. - deixando o orgulho de lado por um momento, deixou os ombros penderem suavemente para baixo. - Espero.

Durante a conversa, a situação lá em baixo continuava a mesma. Eventualmente Kit conseguia se teletransportar, mas nunca para um lugar que de fato queria. De fato, o treino acabou quando ela caiu em cima das arquibancadas após errar pela enésima vez seu teletransporte, e Char quase fritar os outros dois junto dela, parando seus ataques bem a tempo de apenas uma chama lamber as pontinhas da franja de Sasha.

- O queeeeeeee? Não venha para cá!
- Eu já disse que não consigo controlar essas coisas!
- Então se descontrole longe de mim!
- Já chega! - Charlote apagou as chamas que estavam rondando-a desde o começo do treinamento e suspirou, tirando uma mecha ruiva da frente do rosto. - Acabamos por hoje.
- Ufa... - Kit deixou-se cair sentada, passando as costas da mão pela testa para limpar o suor.
- Por hoje.

Charlote repetiu, dando ênfase no hoje, ficara claro que aquela rotina se estenderia por mais alguns dias.

- De qualquer forma não posso exaurí-la tanto, ou seremos prejudicados.

- A terceira série de remakes foi uma adaptação completamente fiel aos livros. Bom, pelo menos é isso o que as notícias falam, eu nunca cheguei a assistir. E já que perguntou, eu venho no ano 3897, porém não sei a diferença que há no fluir do tempo de nossos mundos.


Logo, três mil oitocentos e noventa e sete anos no mundo de Michael poderia muito bem ser apenas um ano na Terra de Sasha, ou poderia ser muito mais. Talvez até fluísse de uma maneira similar, porém Michael não tinha como saber, uma vez que nunca visitara a Terra de Sasha e Kit. Perante a vergonha de Sasha, tudo o que Michael fez foi sorrir e acariciar de leve o topo da cabeça dela, entendia que a vergonha vinha do fato de ela ter sido elogiada, muitos humanos não sabiam lidar com elogios.

- Tudo o que você precisa fazer é perguntar e vai ver o quão valiosa é para eles - Sua atenção então voltou para o treino, observando conforme Kit tentava teletransportar-se para longe dos ataques de sua mestra. Tentava sendo colocado em enorme ênfase. No momento que ela caiu em cima das arquibancadas e Charlotte atacou, o braço de Michael automaticamente foi para a frente de Sasha, empurrando-a suavemente para trás, buscando impedir maiores danos a ela - Quase...

- Inacreditável, as pessoas do futuro são realmente incríveis. - Sasha pareceu momentaneamente chocada, ela começou a fazer cálculos na cabeça em seguida, diante da afirmação dele. Oh, bem, não adiantava, saber se os dois mundos tinham uma progressão temporal similar era impossível a menos que se viajasse de um para o outro, e bem... não era o caso de nenhum dos dois ali. - Oh... deixa pra lá, não é como se isso importasse. 


Ela até estava um pouco interessada no que poderia haver em um mundo tão afrente do que ela estava acostumada, mas Sasha não era uma Viajante Dimensional. Não uma que possuía o Dom, pelo menos. Ela chegara ali por um dos portais que ligavam Diamond à sua Terra, não possuía a liberdade que Kit tinha. Além disso, Sasha era a mais normal dali. Ela aprendera a sobreviver e ajudar, mas não é como se quisesse se aventurar tanto assim. Possuía apenas uma curiosidade.


- Eu... eu vou fazer isso. - ela continuava um pouco corada, não tinha pensado nas coisas por esse ângulo. Em verdade, raciocinando a fundo sobre o assunto, Sasha era o elo fraco da Equipe, ela era frágil e não queria causar problemas aos outros, mesmo desejando ajudá-los.


Após a pequena cena que ocorreu a seguir, com uma quase explosão em sua cara e uma pequena discussão com Kit, assim como o fim do treinamento, a garota pôs-se de pé.


- Oh, bem... acabou o show por hoje.

Kit, que observava Charlotte de esguelha, voltou seus olhos para Sasha. 

- Você estava aqui apenas para me ver ser torturada.
- Claro que não, você sabe que eu te amo. - ela bateu as palmas das mãos em frente ao rosto. - Bem, ja que vocês me acordaram acho que podemos comer alguma coisa. 
- Eu quero bolo de chocolate!
- Eu quis dizer algo salgado...
- Algum tipo de bife então!

Sasha deu de ombros coçando a bochecha em seguida, sua amiga tinha uma voracidade digna de um gato, e comia de praticamente tudo também. Tudo o que fosse comestível e não lhe causasse nenhuma doença, é claro. 


- Pode ser. - ela voltou a cabeça em direção a Michael com a clara intensão de questioná-lo sobre o que ele gostaria de comer, mas então lembrou-se que ele não deveria comer por se tratar de um robô... então fitou Charlotte. - Hum, e você, Char?
- Qualquer coisa está bom. - a Bruxa Vermelha espreguiçou-se sutilmente, girando nos calcanhares para deixar a sala. - Mande o que fizerem por Cheshire depois, eu preciso falar com ele.

Com essas palavras, ela deixou o local. Kit preferiu não questionar sobre o assunto que ambos poderiam ter, ela aprendera a não questionar Char. Sasha tinha entreaberto os lábios para perguntar, mas, como a mulher já havia ido embora, acabou desistindo daquilo.


- O... okay, então.

Ratatosk sabia que estava na hora do treino de Kit, ou pelo menos próximo de ele acabar, então foi para lá que se dirigiu. Conforme ele entrava, Charlotte saía e ele deu espaço para ela de forma teatral, girando para o lado, fazendo uma pequena mesura e estendendo seus braços para que ela passasse. Apesar de saber bem que não era uma boa ideia irritar a bruxa, todos ali já haviam ao menos se acostumado com a natureza de Ratatosk. Passando por ela, ele adentrou o local e olhou para as arquibancadas que haviam aparecido, detectando Kit, Sasha e... alguma coisa a mais. A aparência era de humano, mas Odin o marcava como uma máquina. Não se lembrava de um robô, mas talvez fosse alguma coisa que simplesmente aparecera ali... como o próprio Ratatosk.

- Kit! - Ele chamou e abriu seus braços. Já se faziam alguns dias desde que ele fazia isso, ele via ela, chamava ela e abria seus braços para um abraço, então Kit já deveria saber bem qual era a resposta que ele esperava - Como foi seu treino?

Para Michael, existia força até mesmo em elos fracos. Um exemplo perfeito disso eram os robôs de seu mundo, muitos deles não possuíam os equipamentos de batalha que Michael e seus irmãos Arcanjos possuíam, porém ainda assim eram importantes para o equilíbrio do mundo. Não lutavam, porém ajudavam de diversas outras maneiras. O mesmo podia ser dito sobre Sasha. Ela era fraca de fato, porém havia muito mais que ela podia fazer além de lutar, apesar de saber lutar.

- Parâmetros anotados - Disse Michael, subitamente, virando-se para olhar Kit antes que Ratatosk aparecesse - Se importaria se eu presenciasse seus outros treinos?

Assim que o outro apareceu e Kit foi até ele, Michael sentiu-se estranhamente analisado. Fazendo uma rápida análise no próprio Ratatosk, notou diversas coisas diferentes sobre ele, como o fato de ter algo metálico, porém invisível, sobre seu olho direito servindo como um tapa-olho. Aquilo era a fonte do que o analisara. Em seu peitoral, escondido por roupas, havia uma pequena esfera metálica negra, cujo propósito ainda era um mistério para Michael.

- E quem seria aquele? Mais um membro? - Perguntou para Sasha

- Parâmetros...? - Kit ergueu uma das sobrancelhas sem entender muita coisa, ao passo que Sasha deu um pulo e apontou para Michael.
- Eu sabia, eu sabia, você está infiltrado para capturar as habilidades da Kit e usá-las contra ela em uma luta fantástica envolvendo o fim do mundo!

Um silêncio surgiu no espaço de alguns minutos, em que Sasha deixou s ombros cairem e suspirou.

- Era uma brincadeira.
- Eu sabia. Mas mesmo assim carece de sentido.
- Por que eu daria sentido a uma piada?
- Eu sei lá... - Kit abriu as palmas das mãos em direção a ela, vendo que a amiga ameaçava chegar mais perto para agarrar suas bochechas e puxá-las (muito provavelmente). - Ah, se você quiser pode assistir sim, Michael...

Mesmo que pareça mais que estou sendo feita de pano de chão...

Sua mente choramingava, enquanto Char desistia daquela loucura e encontrava Ratatosk do lado de fora. Ela observou-o de cima a baixo e assoprou uma fagulha no nariz dele em resposta, o que certamente o irritaria como algum tipo de curta alergia.

- Cuidado, pequeno esquilo. - ela colocou ambas as mãos no bolso do longo casaco que usava por sobre seu delicado vestido e continuou a caminhar. - Se continuar correndo de um lado para o outro, pode se perder no caminho.

Ela sempre parecia saber muito mais do que era o esperado. Bom, Charlotte era uma bruxa, se ela já estivesse acostumada a personalidade de Ratatosk, era natural que ele também estivesse acostumado às frases aleatórias sobre coisas que ele preferiria não pensar.

Quando ele passou pela porta e os três moveram sua atenção na direção dele, quase que imediatamente ao chamar o nome de Kit e abrir os braços, ela já estava no meio do caminho, correndo em direção a ele e dando-lhe um abraço apertado em resposta, com um ronronar baixo e carinhoso, tipico de um gato.

- Rat! Como foi na missão, correu tudo bem? - não era uma reação tão surpreendente aquela, quando Kit via a maioria de seus amigos e amigas tendia a se jogar nos braços deles, Michael não estava acordado no momento mas ela fizera o mesmo com Chloe. Ratatosk, certamente, também já a vira ser abraçada por Mitaray e erguida no ar como uma criança.
- Ei, garanhão, tudo em cima? - Sasha ergueu a mão para acenar para ele. Seus olhos já haviam brilhado muito quando o conhecera, mas bem... aparentemente a inocente Kit chamava mais a atenção de Ratatosk. Ela que não se intrometeria no meio daqueles dois... Sasha podia sentir o cheiro de romance no ar a quilômetros de distância, só aqueles dois que não percebiam. Kit por ser muito lenta e Rat por provavelmente acreditar que só desejava provocá-la, mesmo. Com a pergunta de Michael, a ruiva voltou seus olhos para ele e deu de ombros. - É o crush da Kit.

Quase que de imediato, Kit ficou muito vermelha e soltou Ratatosk mais rapidamente do que seria normal.

- N...não tem nada a ver! - ela gaguejou um pouco, tossiu para se aprumar novamente e moveu sua mão em direção a Ratatosk. - Michael, Ratatosk, ele é nosso ladrão profissional e... bom, infiltrador? Isso é valido? Bem... Ratatosk, Michael. Ele vai ficar com a gente a partir de agora, até eu poder mandá-lo de volta pro mundo dele, e... ele é um robô. Basicamente.

Ele espirrou diante da labareda de Char e coçou seu nariz, olhando para ela com uma expressão levemente ofendida - Por favor, Char, eu deixei minha vida de esquilo para trás. Eu sou um bom garoto agora.

Apesar de estar brincando com aquilo, era um fato de que Ratatosk estava determinado a mudar. E mudar para o melhor, ele queria deixar as traições para trás, os dias de ficar olhando sobre o seu ombro tinham que ficar para trás. Ele queria continuar ali, achara um grupo bom, com pessoas boas, diferente de seu mundo onde até mesmo uma criança tinha segundas e terceiras intenções. Não, ali ele não precisava de nada disso, não precisava de suas paranoias. Só precisava de sua dedicação para ser alguém melhor.

- Claro que correu bem, eu estava nela! - Ele sorriu abertamente ao abraçar Kit. Adorava aquela garota, tão boa, tão gentil, tão inocente, tão... fácil de ser provocada. Ah sim, ele amava provocar ela, ver o rosto dela entrar em chamas era uma de suas novas diversões favoritas. Então ele olhou para Sasha e abriu um curto sorriso, com algo de sedutor - Tá tudo em cima sim, minha linda, e com você?

Claro, seu maior interesse estava em Kit, mas ele ainda mantinha seu costume de flertar com mulheres. Mulheres solteiras, é claro. Era algo como um código de moral dele, de não se envolver com pessoas em um relacionamento, logo ele não era um completo safado. Só era um safado enorme. Assim que Kit soltou-se dele, Ratatosk sorriu maliciosamente.

- Eu sou seu crush, é? - Agora Kit poderia saber com toda a certeza do mundo que ele usaria aquilo contra ela até o fim da vida dela. Você não pode dar uma arma na mão de Ratatosk e esperar que ele não a use - Infiltrador é bem válido - Concordou com Kit, era basicamente o que ele fazia em seu próprio mundo. Ergueu sua mão e acenou brevemente para Michael - Prazer!

- Sim, eu registrei completamente o seu treino em meu banco de memórias, anotando suas falhas e acertos. Posso usar isso para analisar treinos futuros e comparar anotações, ajudando você a melhorar ainda mais - Ele falou, após a piada de Sasha, a qual não reagiu. 


Fazia muito sentido que ele quisesse ajudar Kit, afinal se ela se tornasse mais forte, mais rápidos seriam resolvidos os problemas e mais rapidamente ele poderia voltar para a sua Terra. A humanidade era como uma criança que não sabia andar ainda e os anjos eram a sua babá. Sem ele ali, a humanidade certamente entraria em caos absoluto. Ele temia sobre o que poderia ter acontecido no tempo que ele passou fora, uma vez que era incapaz de saber se foram meros segundos, dias, meses ou anos completos.

- Crush é o termo utilizado para quando uma pessoa tem interesse romântico na outra, não é? - Ele precisou confirmar, a palavra não era usada desde o século 21 na sua Terra. Ele pôde notar também, em seu banco de dados, que muitas pessoas na internet consideraram isso uma verdadeira benção - Compreendo. É um prazer conhecê-lo.

- Uou, isso faz muito sentido, você poderia mesmo fazer isso? - Kit pareceu momentaneamente animada ao fitar Michael, era quase possível notar uma cauda de gato surgindo atrás dela e balançando... pera, aquilo era mesmo uma cauda de gato. Assim como haviam surgido pequenas orelinhas peludas, que acabaram desaparecendo tão rápido quando surgiram assim que Rat uniu-se a eles. - Sua habilidade é realmente incrível, normalmente quando me mandam pra esse tipo de trabalho eu acabo sendo descoberta e virando um alvo em menos de meia hora!
- Isso é porque você chama muita a atenção, além de que todos os monstros desse lugar sempre querem matar você. - Sacha cruzou momentaneamente os braços e deu uma piscadela para Ratatosk em resposta ao flerte dele, mostrando a mão direita com o dedo médio e o indicador levantados. - Tudo na paz. 

Kit não soube muito bem porque ficou ligeiramente incomodada com aquilo, mas por estar mais preocupada com a zombaria que parecia vir de três direções ao mesmo tempo, aquela sensação acabou passando despercebida.

- N..não, claro que não, nós somos amigos. Amigos totalmente, cem por cento amigos! - ela corou novamente, balançando as mãos de maneira frenética.
- É, você está completamente certo, Michael. - Sasha moveu-se para mostrar um gesto de beleza para o anjo, o que fez Kit ficar ainda mais vermelha.
- Sério, vocês dois... - as orelinhas haviam surgido novamente, talvez por conta da emotividade dela na ocasião, e a garota abaixou-as para fitar Ratatosk de baixo. - Diga algo!

Ratatosk não notou o incômodo de Kit com seus flertes para com Sasha, caso contrário teria feito uma pequena anotação mental para questioná-la sobre isso, porém essa talvez não fosse a melhor das ideias. Nunca se forçava uma pessoa a falar sobre o que amava, ou o que sentia, ela acabava mentindo para si por sentir a pressão do momento e acabaria apenas machucando-se no futuro. Era melhor deixar que tudo acontecesse no momento que tinha que acontecer.

Riu baixinho com a situação, adorava brincar com Kit e fazê-la sentir aquela vergonha - Já que sou seu crush... - Ele abaixou seu rosto, até alcançar a orelha dela e sussurrou - Vamos para o meu quarto?

Sabia bem qual seria a reação de Kit, e esperava por ela com ansiedade. Apesar de saber que causar muita vergonha nas pessoas não era uma coisa necessariamente boa, sabia também que Kit saberia levar aquilo como a brincadeira que era. Ora, ele não tinha nenhuma vontade para com ela, de beijá-la e de segurá-la em seus braços. Não, nada disso. Nenhuma sensação romântica... Não é?

- Claro que poderia.


Ele notou a transformação breve em Kit, mas atribuiu isso a magia daquele mundo. Sem falar que havia uma nova pessoa chegando ali, portanto perguntar sobre a transformação não seria a melhor coisa a se fazer naquele momento. Poderia muito bem fazer isso depois, quando tivessem tempo e ele pudesse questionar Kit detalhadamente sobre aquilo. Afinal, era do costume de Michael saber o máximo possível sobre o que tudo o que ele via na sua frente.

- Negação é algo comum quando se fala sobre a atração que uma pessoa sente pela outra - Constatou Michael.

- Haha, obrigada então! - Kit sorriu para Michael, parecendo realmente feliz com a ajuda dele.


Era fácil para Ratatosk envergonhá-la e brincar com ela, Kit tinha algum tipo de pureza e inocência dentro de si que fazia-a corar por qualquer coisinha. Bem, não era como se ela fosse totalmente pura, mas a garota cultivava aquela sensação. Independente de seu sobrenome, ela parecia feita de branco puro, uma luz que caminhava e falava.
Como o esperado, diante daquelas palavras, Kit Black pareceu ainda mais vermelha que o normal e fez um gemido muito similar ao de um miado de protesto.

- Nyah! Não, é claro que não... digo... não que você... não, espere! - ela inspirou profundamente para reorganizar os pensamentos e agachou-se no chão, começando a fazer desenhos invisíveis com a ponta de seu dedo. - Seus... implicantes...

Sasha começou a gargalhar imediatamente, os braços segurando a barriga, quase caindo no chão também. 


- Não leve tão a sério... é apenas uma brincadeira.
- Eu sei que é uma brincadeira, humpf.
- Oh, bem, mas deixando isso de lado um pouco, estávamos indo comer, Rat. Você vem com a gente? - Sasha questionou a ele, endireitando o corpo. Ato contínuo, Kit também ergueu-se, ainda vermelha dos pés a cabeça.
- Isso mesmo, você deve estar com fome depois de todos os lugares que teve de andar. - mais uma vez, porém, Kit não notou que aquela frase poderia ser completamente maliciável, principalmente na mente de Ratatosk.

Sasha cutucou levemente Michael e ficou na ponta dos pés para falar em seu ouvido.


- Vai se acostumando... esses dois são assim sempre.

O ladrão gargalhou com a reação de Kit, sempre era algo que animava o seu dia, não importando a qual momento fosse. Via tão pouco daquela inocência que considerava uma benção ver algo tão raro assim no seu dia-a-dia. Em seu mundo, as pessoas não costumavam ser como Kit, na verdade, ele tinha certeza de que não havia ninguém como ela lá. O povo de Yggdrasil nascia aprendendo duas coisas, a mentir e a trair. Era como se fizesse parte da natureza deles, todos tinham segredos e os segredos dessas pessoas tinham segredos.

- Ah, eu adoraria - Ele falou, realmente estava com um pouco de fome naquele momento. Então veio a frase de Kit - Está se oferecendo?

Sabia bem que ela não estava, mas isso não significava que não iria provocá-la por isso. Ele murmurou algo em voz baixa e logo Odin largou-se de seu olho, voltando ao seu formato de esfera e caindo na palma de sua mão, em seguida sendo guardado em seu bolso. Então, seu olho direito fechou-se e ele murmurou um ''ai''. Olhou para baixo, para o lado direito de seu colete. Houvera uma batalha em sua missão, uma curta, porém ocorrera. Lembrava-se de ter se esquivado desse golpe, porém havia um corte no corpo de Ratatosk, o colete tendo contido a maior parte dele. Havia sangue saindo.

- Desde quando isso está aí?

- Não há a necessidade de agradecimentos.


Era possível notar que Michael sempre se colocava ao lado de Sasha e de Kit, nem mesmo um passo na frente ou atrás. Caso um ataque súbito ocorresse pela frente, ele poderia saltar e protegê-las, caso ocorresse pelas costas, o movimento também poderia ser realizado. Era quase como um instinto para ele, encontrar-se em uma posição onde poderia proteger humanos. Respondeu para Sasha que fora programado para adaptar-se a qualquer situação, uma resposta esperada, porém que foi cortada pelo sangue que saía do corpo de Ratatosk. Pouco, porém ainda sangue. Ele levou sua mão metálica até o local, algumas gotas de sangue caindo sobre os dedos e um pequeno aerosol, como aqueles que se passam em contusões nas pernas, foi expelido e entrou em contato com a pele de Ratatosk, fechando-a sem deixar nem uma cicatriz. Porém, Michael olhava para a sua mão, onde havia sangue.

- Você... - Ele ergueu seu rosto para observar Ratatosk - Não é humano, não é?

- Eu, eu... não, é claro que não! - mais uma vez, Kit estava prestes a explodir de vergonha. Em verdade, era de se imaginar que ela passava a maior parte do tempo que dividia com Ratatosk vermelha dos pés de cabeça e com as mãos no rosto.

Sasha estava prestes a fazer uma piadinha bastante quente sobre o ocorrido - talvez se oferecer de brincadeira para tomar o lugar dela, já que percebera que nunca seria levada a sério por Rat já fazia algum tempo, quando o sangue começou a escorrer do corpo dele.


- Ei, você está sangrando, está tudo bem?
- Sangrando...? - Kit desceu seus olhos novamente para ele, aproximando-se num átimo de segundo novamente. - Você disse que correu tudo bem!

Antes que a garota se apressasse para cuidar da situação, Michael interferiu. O ferimento foi fechado quase que de imediato, sem deixar qualquer cicatriz, e os olhos de ambas as jovens presentes se arregalaram.


- Oh my...
- Uau, Michael, isso é incrível! - era lógico que Kit Black iria ficar feliz com esse tipo de habilidade, Rat já teria chegado a conclusão que ela tendia a proteger as pessoas e desejava curá-las com frequência. Em questão de força, para Kit, uma habilidade de cura era muito mais importante que um ataque bruto.

Então, Michael disse aquilo. Sacha entreabriu os lábios com visível choque, olhando Ratatosk de cima a baixo para ver se encontrava algo não humano nele... e, como o esperado, não achou nada.


- Hein? Como assim  você não é humano? Você parece super humano pra mim.
- Mais importante que isso... você está se sentindo bem, de verdade? Não está doendo mais? - Kit, como o esperado dela, preocupou-se mais com o estado de saúde de Rat do que com a origem do mesmo. Aquilo era uma surpresa para ela? É claro que era! Mas a saúde das pessoas que gostava vinha sempre em primeiro lugar.

Apesar de rir, ficava claro que as risadas de Ratatosk não saiam com a intenção de machucar Kit ou de diminuí-la. Elas vinham de um divertimento puro, eram extremamente sinceras, algo que contrastava muito com o fato de Ratatosk mentir como ninguém. Raras eram as vezes que algo verdadeiro saía de sua boca, porém quanto mais ele provocava Kit, mais ele via-se rindo daquela maneira. Tinha certeza absoluta de que nunca rira assim em toda a sua vida.

- Eh, é só um arranhão.

A pele estava aberta e o sangue saía, não era um ferimento muito profundo, mas certamente não era um arranhão. Ratatosk aguentava bem as porradas que recebia, fora treinado para isso. Pois se um infiltrador for capturado, as chances de ele falar são altas, logo em Yggdrasil os infiltradores e espiões eram ensinados a aguentar a dor sem reclamar ou sem perder o controle de si. Os métodos para que isso acontecesse eram qualquer coisa menos éticos.

- Oh, uau, você é útil - Então a expressão de Ratatosk tornou-se uma de confusão - Claro que sou humano. Talvez por eu ser de um mundo diferente do seu você não me reconheça como um, mas lhe garanto que sou humano. Um belo exemplar humano - Ele adicionou, antes de voltar para Kit - Estou bem sim, mas não me importaria de ter você como minha enfermeira particular.